Nasci em junho de 1960. Tenho, portanto, 58 anos. A minha idade de inflexão ambiental. E por que digo isso? Apesar de nascer e morar em uma grande cidade, minha infância foi povoada pelo sentimento de que a natureza a todos cercava e fazia parte de cada um.
Criança, vivia solto, explorando as matinhas e nascentes próximas. Qualquer lugar ao ar livre era sala de aula natural à espera de seus curiosos alunos. E, como alunos aplicados, nos empenhávamos na matéria e voltávamos sujos e cansados para o banho, jantar, um pouco de tevê e cama.
Pré-adolescente, curti as férias na praia ou nas barrancas dos rios Grande ou Paraná. Na casa da praia ou acampado na beira dos rios, o crepúsculo era anunciado pela orquestra de sapos, rãs e curiangos. A noite era pontuada por estrelas, vagalumes e relâmpagos. A prosa corria solta até que cada um ia se ajeitando em seu cantinho em busca do sono reparador, ansiando pelas aventuras do dia seguinte.
Cacei rãs, traíras e içás. Fui caçado por vespas, micuins e piuns. Tirei água do fundo do barco utilizando lata de óleo Mazzola, porque era retangular e, portanto, mais eficiente do que a do óleo Salada, que era redonda. Pisei em mandi e chorei de dor, sem contar para o meu pai, por vergonha da pexotada. Admirava meu “velho” com seus quarenta e poucos anos, falando em marcha lenta com os companheiros ou caboclos locais. A faca modelo Bowie, pendendo sob a cinta. Nos pés, as alpargatas ainda molhadas. A cada tragada, a brasa do Continental sem filtro se destacava no ambiente pouco iluminado.
Por vezes eu dormia cheirando a carbureto, pedra de poderes mágicos que fazia das trevas luz. Vi piracemas. Milhares de peixes, de várias espécies, nadando contra a correnteza, em um frenesi reprodutivo, com suas nadadeiras dorsais riscando a superfície. Não se pegava o peixe nessas ocasiões. O sentimento era de pura reverência.
O barranco de onde presenciei um dos mais belos espetáculos não existe mais, pois toda a calha do rio Taquari foi assoreada pela ação do homem.
Pouco a pouco, as rotas dos velhos Tietê, Grande e Paraná foram represadas para que as cidades e os campos tivessem energia elétrica. Metro a metro, os ambientes naturais mais próximos foram ocupados. Nas cidades, perdemos o direito de admirar as estrelas. Há alguns anos morei em um condomínio numa dessas cidades dormitórios. No início, fiquei feliz por ouvir sapos e ver os vagalumes nos terrenos vizinhos. O prazer não durou muito. Em pouco mais de um ano, os terrenos do entorno foram ocupados. Não posso reclamar: acho que meus vizinhos também almejavam a mesma “qualidade de vida” que eu.
Não deu tempo para o meu filho desfrutar do prazer deste contato com a natureza. Ele tem somente dezesseis anos e não teve a oportunidade de ouvir uma orquestra de sapos, rãs e pererecas ou de ver o cintilar dos vagalumes. Não teve seus caminhos iluminados pela luz difusa da lanterna de carbureto. Tampouco viu piracemas. Há alguns anos atrás, quando ainda pequeno, travamos uma bela guerra de amoras maduras utilizando um arsenal disponível do outro lado da rua. Foi a atividade mais rústica dos últimos tempos. Os “hematomas” saíram na hora do banho. As roupas não tiveram tanta sorte.
Meu filho é um exemplar respeitador, mas não um admirador da natureza. Aprendeu com os pais e na escola que não se joga lixo na rua. Aprendeu também a separá-lo em orgânico e reciclável. Fecha a torneira ao escovar os dentes, com medo de que a água do mundo acabe. Diz que, se não fizermos isso, o ser humano poderá desaparecer da face da Terra. Confesso que me pego pensando em quanto tempo as piracemas voltariam ao Tietê se a nossa espécie fizesse esse favor ao planeta. Fico feliz com as atitudes do meu filho, mas, ao mesmo tempo, triste com os novos tempos.
Temo que daqui a alguns anos, quando toda a minha geração tiver virado estrela, vaga- lume, relâmpago ou Continental sem filtro, restarão entre os habitantes desta metrópole somente os indivíduos conscientes que temem pelo nosso futuro, mas que não experienciaram o convívio com a natureza. Terão um cuidado meramente protocolar, burocrático. Sem contato. Sem trocas.
O que essa lacuna de convívio e carinho poderá representar? O fim do respeito e o início do medo? O fim do contemplar, do se sentir parte integrante? Não sei aonde chegaremos, mas isso não me parece bom. Posso dizer que vivi o melhor dos mundos, mas ainda corro o risco de ver o seu pior.
Por isso me encontro em plena idade da inflexão ambiental.
Paulo Groke é Engenheiro florestal e gerente de projetos ambientais do Instituto Ecofuturo.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 18/06/2018
Autor: EcoDebate
Fonte: EcoDebate
Sítio Online da Publicação: EcoDebate
Data de Publicação: 18/06/2018
Publicação Original: https://www.ecodebate.com.br/2018/06/18/piracema-memorias-e-futuro-artigo-de-paulo-groke/
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