O estudo sobre propriedades territoriais foi o ponto de partida da rede de pesquisa. A historiadora se dedica a traçar paralelos entre a legislação em relação à propriedade em Portugal, Brasil e França. Este último país foi incluído devido ao Código Civil Napoleônico ter inspirado inúmeros outros no mundo ocidental. “De forma geral, esse código civil estabeleceu a ideia da propriedade absoluta, mas ela salvaguardou também algumas experiências de terras coletivas”, explica. No entanto, de acordo com a pesquisadora, ao contrário das experiências francesa e portuguesa, a função social da propriedade foi pouco respeitada no Brasil. Para exemplificar, Márcia cita o trabalho realizado pela pesquisadora Cláudia Santos na Universidade de Sorbonne, em Paris, na França. Nesse estudo, Cláudia identificou, ao analisar jornais e cartas de viajantes, a existência de discussões na sociedade francesa em relação a uma expectativa de que haveria uma reforma agrária no fim do século XIX no Brasil, o que não ocorreu. “Também nos anos 1930, quando Getúlio Vargas assume, se teve a ideia de que seria possível fazer uma reforma agrária. Ela não aconteceu. João Goulart caiu exatamente por isso. Então quase todos os momentos de crise da sociedade brasileira, crise econômica, crise social, está muito marcada pela visão que se tem de que há uma ameaça se você fizer alguma política mais generosa. Por isso, a experiência brasileira é uma experiência muito interessante, porque ela até o final jogou para o futuro uma política que devia ser feita naquela conjuntura”, avalia.
Na contramão do conservadorismo brasileiro, Portugal adotou, desde o século XIV, o sistema de sesmarias para ocupação da terra com a exigência de cultivo para que a concessão fosse efetivada. Já no Brasil, a distribuição de sesmarias não foi acompanhada dos procedimentos para sua regularização. “O sistema funcionou como porta de entrada para a concessão de enormes glebas de terra, sem que houvesse esforços para que se limitasse a expansão territorial de grandes potentados rurais”, comenta a pesquisadora. A criação das sesmarias também abriu caminho para inúmeros litígios que correram na Justiça ainda no século XXI, com base em documentos de séculos anteriores. Márcia relembra um dos casos mais emblemáticos em relação à fraude de terras que levou 20 anos para ser provado. Em 2005, o Estado conseguiu reaver nove milhões de hectares de terras localizadas em 32 municípios do Pará, o suficiente para abrigar a população inteira de Portugal. “O interessante e dramático dessa história era o fato de que a grilagem estava calcada na invenção de um ponto zero na história da ocupação daquela área: a existência de cartas de sesmarias, doadas pela Coroa a dois portugueses: Manoel Joaquim Pereira e Manoel Fernandes de Sousa”, escreve a pesquisadora em Direito à terra no Brasil (ed. Alameda, 2009, 286 p.), livro publicado com apoio da FAPERJ. Na entrevista, Márcia Motta retoma o caso e menciona a necessidade de capacitação aos juízes para lidar com documentos históricos, uma vez que a utilização de documentos históricos para forjar linhas sucessórias é recorrente.
Ainda na questão fundiária, a rede passou a mapear as propriedades “fantasmas” e as “coletivas”. As propriedades fantasmas são aquelas que deveriam ser tombadas pelo patrimônio histórico, mas acabaram abandonadas e ainda assim fazem parte da memória e identidade de determinada comunidade. Já as propriedades coletivas são entendidas como aquelas em que a terra é de todos e o privado é aquilo que é comercializado, como animais. O INCT, nomeado de Proprietas, tem se dedicado especialmente a dois tipos de propriedades coletivas, as quebradeiras de coco-babaçu, no Maranhão e os faxinais, no Paraná. As comunidades de faxinais foram reconhecidas em lei estadual de 1997. Nessas áreas a terra é de todos e o que é privado é a comercialização de porcos. Além destas, há muitos outros exemplos, sendo as primeiras terras coletivas as áreas ocupadas por populações indígenas. Apesar da Constituição de 1988 garantir a permanência dessas populações em suas terras, apenas em 2003, com sua regulamentação, a determinação ficou mais clara e permitiu, por exemplo, a demarcação de terras quilombolas. No entanto, a pesquisadora não deixa de registrar que mesmo com a legislação, a dos faxinais, por exemplo, é a mais antiga, mas não é suficiente. “É preciso uma cultura no país que desperte para a importância dos espaços coletivos”, enfatiza.
Márcia Motta pesquisa o conceito de propriedade desde a década de 1980 (Foto: Lécio Augusto Ramos)
Com o tempo, a rede de pesquisa se desdobrou para pesquisas na área de propriedades imateriais do direito autoral e do direito de patente. No caso das patentes, não há consenso no grupo quanto ao benefício da existência desse tipo de proteção. Para alguns, o registro pode ser motor de desenvolvimento econômico, enquanto para outros irá dificultar o acesso. Para Márcia, o que precisa ser pontuado é a barreira financeira criada pelas patentes e que limita o acesso a bens essenciais, principalmente na área da saúde.
Para a pesquisadora, uma das áreas mais instigantes dentro do estudo de propriedades no momento é trabalhar com o direito de autoria em tempos de tantas mudanças tecnológicas e uso intensivo de redes sociais. “Estamos vivendo em uma sociedade em que as pessoas constroem a autoria o tempo todo, no Youtube, no Facebook. As pessoas hoje não precisam mais das grandes gravadoras para fazer sucesso. A própria ideia de sucesso está mudando muito, então a gente não sabe muito como isso vai ficar nos próximos anos”, finaliza.
Autor: Faperj
Fonte: Faperj
Sítio Online da Publicação: Faperj
Data: 14/02/2019
Publicação Original: http://www.faperj.br/?id=3708.2.9
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