Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Sociologia e Direito pela UFF, a Jovem Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ, coordena o Observatório de Direitos Humanos, que integra a Rede de Pesquisa em Direitos Humanos, Paz, Inseguranças, Sustentabilidade e Atores Globais. Aninha, como é carinhosamente tratada pelos amigos, também integra a Global Business and Human Rights Scholars Association, da Research Data Alliance, e o Instituto Nacional de Pesquisa e Promoção em Direitos Humanos. (INPPDH).
Mas como tratar do tema alimentação sob a ótica dos direitos humanos? Adepta da alimentação saudável e curiosa sobre a origem dos produtos que consome, Ana explica que só descobriu a ferramenta que poderia dar suporte à sua pesquisa em seu segundo doutorado. A Sociologia Econômica permite realizar uma ‘radiografia’ empírica do mercado de insumos agrícolas, avaliando suas práticas por meio das ciências sociais, uma abordagem pouco difundida no Brasil. “Consegui observar o mercado empiricamente a partir da prática dos atores”, explica Ana. Na opinião da orientadora Leticia Veloso, ao assinar a apresentação do livro, “ao tratar essa questão, a autora não o faz em termos daquilo que comemos ou dos modos de se alimentar, mas de como a maioria dos alimentos são hoje produzidos (...) e desenrola a complicada trama de relações, mercados e escolhas políticas que geram o que a autora aptamente denomina de violações de direitos humanos”.
Segundo Ana, sua pesquisa interdisciplinar em direitos humanos e empresas, com foco no mercado de alimentos, constatou que uso de pesticidas no Brasil vem aumentando, nas últimas décadas, causando um número considerável de doenças e até mesmo óbitos, além da contaminação persistente do meio ambiente. Ela acredita que tal prática está por trás das graves violações dos direitos humanos no Brasil, em especial ao direito à saúde, à alimentação e à sustentabilidade ambiental, que decorrem da utilização de pesticidas na agricultura.
“Considero tais práticas apenas como ações e estratégias dos atores, independentemente de suas razões políticas, para que não haja qualquer sentido ideológico”, esclarece a autora. Enquanto conceitos como o de ‘capitalismo’, entre outros, são utilizados como alusão aos arranjos econômicos pós-industrialização, um juízo minimamente crítico a respeito de algumas dessas práticas ou de um conjunto delas, de viés moral e ético, pode ser conferido no último capítulo. “Partimos do conceito sociológico de campo econômico para compreender as mudanças nas práticas de agricultura e as dinâmicas de poder intrincadas e imbricadas dos atores no mercado de alimentos que possibilitaram o entrelaçamento de alimentos com as biotecnologias e a química”, explica a socióloga.
Combate à erva daninha em lavoura de trigo é uma das práticas que afetam a saúde das pessoas e o meio ambiente (Foto: Erich Westendarp/Pixabay)
Em um mercado que ela denomina agro-bioquímico-tecnológico alimentar, existe um acordo entre as indústrias de fertilizantes e defensivos químicos e as empresas produtoras de sementes e que se dedicam à biotecnologia para agregar melhoramento ou modificações genéticas que alterem as características em plantas. No capítulo 1, Ana discorre sobre as práticas agrícolas, desde a domesticação até a produção de sementes híbridas, um processo de aprimoramento genético que agrega caraterísticas desejáveis de sabor, coloração, e resistência à pragas, mas que inviabiliza seu replantio. Segundo a pesquisadora, a tecnologia de modificação genética pela inserção da bactéria Bt nas sementes de plantas foi uma inovação fundamental para a integração entre o setor de sementes e químico, por permitir que a planta seja geneticamente resistente a pesticidas, como o glifosato. “Não fosse por essa modificação genética, a utilização do glifosato mataria toda a lavoura”, esclarece Ana.
No capítulo 2, a pesquisadora trata das transformações econômicas, ainda no século XX, que possibilitaram a emergência das multinacionais, via globalização, a fragmentação dos mercados e sua nova configuração, que se espalha mundialmente em redes de produção que dificultam a exigência de responsabilização e governança. “Embora a responsabilidade social corporativa seja um horizonte ético de governança nas cadeias globais, a pouca rastreabilidade dos nós dessas cadeias dificulta ou impossibilita a prestação de contas sobre danos que advenham de suas atividades”, afirma Ana.
O capítulo 3 examina o processo ao longo de décadas que foi configurando o mercado de forma a facilitar a concentração dos alimentos nas mãos de poucos, e suas consequências como estratégia de poder no ambiente e na vida humana. Mostra que a concentração de poder nesse campo possibilita o aumento de influência política, em âmbitos nacionais e internacionais, assim como as tomadas de decisão em âmbito local, como o afrouxamento de padrões restritivos de pesticidas. As fusões posteriores ao surgimento das multinacionais, especificamente a fusão do setor de alimentos ao químico, integraram a tecnologia como dinâmica de poder, visto que o campo agro-bioquímico-alimentar possui controle sobre si mesmo e exerce poder sobre as empresas que estão sobre seu controle, via biotecnologia e financeirização privada.
O último capítulo aborda o desdobramento dos capítulos anteriores em termos de saúde e direitos humanos. “Sendo o Brasil um dos maiores países em agronegócios, a diversidade produtiva é atraente ao mercado internacional, e tal atrativo incentiva o uso de tecnologia para a produção com pesticidas”, diz a socióloga. Segundo ela, com a atual desregulamentação brasileira do controle de pesticidas, os níveis de exposição e toxicidade por esses aditivos aumentaram velozmente, produzindo efeitos severos à saúde, incluindo doenças oncológicas e óbitos. Ela destaca o fato de que embora a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) tenham desenvolvido códigos de conduta para distribuição de pesticidas, entre outras recomendações e convenções sobre segurança alimentar, o monitoramento do cumprimento de tais obrigações depende, entre outros fatores, de indicadores eficientes dos padrões de toxicidade das substâncias químicas, cujo desacordo deixa em aberto o risco à saúde.
Ana Luiza da Gama e Souza acredita que o importante é o mapeamento das boas práticas
(Foto: Arquivo pessoal)
Ana acredita que o mais importante é o mapeamento das boas práticas, objeto de estudo que desenvolve paralelamente na busca por contribuições de empresas para garantir os direitos humanos. Como exemplos de boas práticas, Ana cita o sistema agroflorestal de cultivo; o controle biológico de pragas, que vem sendo adotado inclusive em grandes lavouras; e o próprio esforço da Ciência e startups em desenvolver práticas alternativas para a agricultura. A pesquisadora acredita que cada vez mais é preciso estimular o Estado e as organizações da sociedade civil a criarem leis que regulem o mercado. Há ainda o desafio da regulação de empresas globais, que, embora sejam encorajadas a desenvolverem iniciativas, em termos de direitos humanos, como práticas corporativas que agregam valor às suas marcas, também são levadas a se responsabilizarem, em termos jurídicos, pelos danos que promovem. O aspecto jurídico dessa questão é tão importante que será o foco do próximo livro da pesquisadora. Nele, Ana espera debruçar sobre os Princípios de Ruggie (Princípios Orientadores das Nações Unidas idealizados para guiar a prática das empresas segundo as normas básicas de respeito e garantia dos direitos humanos no ambiente empresarial, sob os pilares de ‘proteger, respeitar e reparar’) para defender a ampliação da responsabilidade pública no cumprimento de direitos diante do poder crescente do mercado agro-bioquímico-tecnológico alimentar.
Autor: Paula Guatimosim
Fonte: faperj
Sítio Online da Publicação: faperj
Data: 12/08/2022
Publicação Original: https://www.faperj.br/?id=161.7.7
Sítio Online da Publicação: faperj
Data: 12/08/2022
Publicação Original: https://www.faperj.br/?id=161.7.7
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