Protesto, no Centro do Rio, contra as mortes de Marielle e Anderson (Foto: Fabio Vieira/FotoRua/NurPhoto)
“Um país é tanto mais democrático quanto menor for a desigualdade na distribuição do luto público. A violência de Estado, essa com a qual nos deparamos todos os dias em maior ou menor medida, diz respeito não apenas à maneira como as pessoas morrem, mas também como são enlutadas". Como afirma Carla, esse é um resumo bastante sintético da argumentação que Judith Butler vem desenvolvendo em sua crítica à tortura, às prisões e, sobretudo, ao modo como certas vidas são reconhecidas como tendo mais ou menos valor no momento em que são perdidas.
Situando a tese da americana no Rio de Janeiro, poderíamos perguntar qual a diferença entre a morte de um pedreiro morador da Rocinha e a de um empresário morador do Leblon? A resposta deveria ser nenhuma. Entretanto, segundo Carla, não é exatamente o que vemos no cotidiano. Segundo a professora, a comoção, principalmente por parte da mídia carioca, é bem maior, ou só existe, no segundo caso. “A banalização da morte é algo que não pode ser parte do nosso cotidiano, por mais violento que esse seja”, afirma. “O silêncio diante de certas mortes, principalmente as de moradores de favelas, configura a ausência do direito ao luto público. Na verdade, o Brasil não tem tradição de promover o luto público ou político. Diante disso, o que podemos perceber nas discussões nas redes sociais é uma disputa sobre quais mortes têm mais valor e quais as manifestações de luto seriam mais legítimas. Isso revela um clamor da população para fazer luto pelas vítimas de violência da cidade e expressar a indignação com os acontecimentos”, diz Carla.
Um dos exemplos de ausência de luto público foi quando houve o rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco, de propriedade da Vale e da empresa anglo-australiana BHP, causando uma enxurrada de lama que inundou várias cidades no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, na região central de Minas Gerais, em 2015. “Na ocasião, houve uma certa comoção com o acidente, mas pouco tempo depois mal se falava sobre o assunto ou sobre as vítimas desse terrível acontecimento. É como se as perdas, anônimas, fossem exclusivamente individuais, restritas apenas àqueles que perderam seus familiares, suas casas, suas vidas”, contemporiza a professora. Ela prossegue: “A falta de um luto público é como se a nação não tivesse perdido seus filhos. Não paramos para dizer que não aceitamos o que aconteceu, que não aceitamos a perda dessas vidas”, afirma Carla.
Curiosamente, nas discussões no Facebook por ocasião dos assassinatos da ex-vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, enquanto alguns reivindicavam luto e se indignavam pela falta de respostas sobre o crime, outros criticavam, questionando por que não havia tamanha comoção em relação a tantas mortes de policiais militares. “Isso acontece exatamente pela ausência do hábito do luto público. Se a princípio parece algo que não é tão importante, esse embate on-line mostra que as pessoas sentem falta”, afirma Carla.
A professora Carla aproveita para falar a respeito do caso Marielle Franco. “A morte dela está carregada de contradições. Pensar que ela foi assassinada apenas por ser alguém que lutava por direitos humanos apaga todas as suas características de mulher negra e lésbica. Mas não podemos esquecer o fato de que Marielle foi eleita vereadora com cerca de 45 mil votos e como assessora parlamentar continuava a defender os mesmos pontos de vista. Parece que esse ato brutal foi a tentativa de lhe calar a boca. E aquela mulher, como todos os moradores de favelas, policiais e cidadãos comuns, merece o luto público”, exemplifica a professora, que inclui em suas aulas as reflexões de Judith Butler adaptadas à realidade carioca. “Estou preparando um livro que será lançado em breve”, finaliza Carla.
Autor: Danielle Kiffer
Fonte: FAPERJ
Sítio Online da Publicação: FAPERJ
Data: 20/09/2018
Publicação Original: http://www.faperj.br/?id=3605.2.5
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