A tragédia de Brumadinho não pode ficar impune, artigo de Andresa Aparecida Rocha Rodrigues
A Justiça tarda, mas não falha? Fiz esta pergunta a mim mesma e, diante das más notícias no apagar das luzes de 2022, só consigo dar a seguinte resposta: a Justiça tardou e falhou.
Refiro-me ao grave equívoco da decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) que trouxe desalento a familiares das 272 vítimas fatais e atingidos pelo rompimento da barragem B1 Mina Córrego do Feijão, ocorrido em 25 de janeiro de 2019, em Brumadinho (MG).
Em dezembro do ano passado (16/12), a Segunda Turma do STF decidiu, em julgamento virtual por 3 votos a 1, que a Justiça Federal é quem tem a competência para julgar a ação criminal sobre as responsabilidades pela ruptura da barragem, de propriedade da mineradora Vale. Em caráter de urgência, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) encaminhou um requerimento ao ministro da Segunda Turma do STF Edson Fachin solicitando que o pleno do Supremo analise o caso em sessão presencial, em uma tentativa de reverter a decisão. Ainda aguarda-se a manifestação a respeito deste recurso do MPMG.
Com a decisão da Segunda Turma do STF, o processo, aberto em fevereiro de 2020 na Justiça do Estado de Minas Gerais (MG) após a denúncia do MPMG, deixou de tramitar na instância judicial do Estado de MG. Por consequência, todos os atos tomados pela Justiça estadual no curso da ação penal desde 2020 foram anulados. Em janeiro deste ano (18/01), a presidente do STF, ministra Rosa Weber, determinou que a Justiça Federal em MG promovesse o imediato andamento do processo penal com o argumento de que havia risco de prescrição de crimes apontados pelas investigações da tragédia.
Diante destes riscos, o Ministério Público Federal (MPF) agiu na sequência. Cinco dias depois (23/01), o MPF ratificou integralmente a denúncia oferecida pelo MPMG em janeiro de 2020 que originou a ação criminal na Justiça do Estado de MG. No dia seguinte (24/01), a 2ª Vara Criminal Federal de Belo Horizonte acolheu a denúncia do MPF.
É importante reconhecer o esforço e a agilidade do MPF e da Justiça Federal. Entretanto, ainda sinto o gosto amargo da injustiça que é resultado do vai e vem na Justiça.
Há uma novela judicial graças a manobras jurídicas, o que é inaceitável. Na cronologia dos fatos, isso fica claro. Em junho do ano passado, o ministro Fachin, relator do caso no STF à época, chegou a derrubar uma decisão desfavorável a familiares de vítimas e atingidos pela tragédia datada de outubro de 2021 do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Fachin determinou que a Justiça do Estado de MG era a instância adequada para a tramitação da ação criminal.
O STJ havia considerado a Justiça Federal competente para julgar o processo, acolhendo os recursos de dois réus da ação criminal, o ex-presidente da Vale Fábio Schvartsman e o engenheiro civil Felipe Figueiredo Rocha. Novamente, os dois réus da ação criminal entraram com recurso, desta vez no STF, e a Segunda Turma restabeleceu o entendimento do STJ. No placar de 3 a 1, Fachin foi o único favorável ao trâmite do processo na justiça estadual de MG.
Já se passaram quatro anos da tragédia e três anos de tramitação do processo criminal na Justiça do Estado de MG. A sensação é que familiares e atingidos pela ruptura da barragem da Vale estão caminhando em um deserto de manobras jurídicas que transformam a Justiça em um espaço de injustiças. Com a morosidade judicial, segue-se o curso da impunidade.
Por isso, a Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão (AVABRUM) já se manifestou diversas vezes com indignação pelos retrocessos em relação ao processo criminal, além de manter seu propósito de plantar as sementes nascidas da dor da perda de 272 vidas, dentre elas o Legado de Brumadinho**, projeto idealizado pela AVABRUM.
O que é preciso reafirmar é que são fartas as provas, documentos e depoimentos coletados pelas investigações sobre o rompimento da barragem e que oferecem fundamentos sólidos ao processo que agora tramita na 2ª Vara Criminal Federal de Belo Horizonte.
A ação judicial tem 16 réus que respondem por homicídio qualificado (por meio cruel e sem chance de defesa) por 270 vezes (270 pessoas mortas) — entra elas, estavam duas gestantes. Além de Schvartsman e Figueiredo Rocha, também são réus diretores e funcionários da Vale e da Tüv Süd, empresa de consultoria alemã que foi responsável por atestar a segurança da barragem que se rompeu. As duas empresas também respondem por crimes contra a fauna, flora e poluição ambiental. Segundo o MPMG, um caso com tamanho impacto social e ambiental precisaria ir a júri popular e na instância estadual onde o crime aconteceu.
A denúncia do MPMG que foi ratificada pelo MPF cita, em vários trechos, que a Vale e a Tüv Süd sabiam que a barragem poderia romper, sendo que a mineradora detinha, inclusive, a estimativa de que poderiam morrer 215 pessoas. A realidade tenebrosa superou o horror da previsão. A seguir, trechos das páginas 471 e 472 da peça de denúncia cujo trabalho é resultado de perícias e investigações de vários órgãos, dentre eles o próprio MPMG, Polícias Civil de Minas Gerais (PC-MG) e Federal (PF).
“As informações periciais confirmaram as apocalípticas previsões e estimativas do estudo de Dam Break [estudo da ruptura hipotética] da Vale. Quando da ruptura da barragem, a lama depositada em seu interior flui vigorosamente com velocidade de aproximadamente 80 km/h. A enorme massa fluida, com cerca de 9,7 milhões de metros cúbicos, atingiu a área administrativa da empresa, como um verdadeiro tsunami, vindo a ‘atropelar’ centenas de pessoas com alguns milhões de toneladas de lama, em 63 segundos”, conforme consta nas páginas citadas.
Em seguida, o MPMG apresenta uma triste comparação para dar a dimensão da força de destruição do tsunami de rejeitos de mineração: “A magnitude do rompimento da Barragem 1 pode ser representada pelo abrupto desabamento de uma dezena de prédios de 24 andares, se comportando como uma onda fluida de rejeitos, com o volume equivalente ao da lagoa da Pampulha e com o peso de 37.500 mil veículos VW fusca, todos com a velocidade simultânea de cerca de 80 km/h.”
O MPMG prossegue: “As constatações do Dam Break, concretizadas quando do efetivo rompimento da estrutura, demonstram que os denunciados, por meio do referido estudo, de ampla a grande [sic] difusão interna na Vale, tinham conhecimento das características objetivas do rompimento (…)”.
A descrição apresentada pelo MPMG é reveladora sobre a devastação provocada pela onda de rejeitos de minério, que destroçou 272 vidas humanas, casas, estruturas de edificações, vegetação e animais. A avalanche de rejeitos causou um rastro de destruição em Brumadinho e percorreu, pelo menos, cerca de 300 quilômetros, tendo afetado diretamente 17 cidades mineiras.
A lama tóxica também poluiu as águas do rio Paraopeba e, quatro anos depois da tragédia, as marcas do terror continuam nas nossas vidas. Dois nascituros que estavam sendo gestados e suas mães morreram soterrados pelo tsunami de rejeitos – por isso a AVABRUM reivindica que são 272 vítimas, e não 270. Além disso, como parte do cenário de tristeza e desalento, os corpos de três vítimas da tragédia – Maria de Lurdes da Costa Bueno, Nathália de Oliveira Porto Araújo e Tiago Tadeu Mendes da Silva – ainda estão soterrados na “lama de sangue” da barragem da Vale.
A luta por Justiça segue sendo nosso farol e a AVABRUM reconhece o valor de cada representante do judiciário que cumpre o seu dever para garantir um julgamento justo, devendo-se citar o incansável trabalho do MPMG. A jornada pela vida continua e o que se defende é que a Justiça não pode mais tardar nem falhar.
Andresa Aparecida Rocha Rodrigues, Vice-presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão (AVABRUM) e mãe de Bruno Rocha Rodrigues, funcionário da Vale que é uma das 272 vítimas fatais da tragédia.
**Projeto realizado com recursos destinados pelo Comitê Gestor do Dano Moral Coletivo pago a título de indenização social pelo rompimento da Barragem em Brumadinho em 25/01/2019, que ceifou 272 vidas.
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in EcoDebate, ISSN 2446-9394
Autor: ecodebate
Fonte: ecodebate
Sítio Online da Publicação: ecodebate
Data: 17/02/2023
Publicação Original: https://www.ecodebate.com.br/2023/02/17/a-tragedia-de-brumadinho-nao-pode-ficar-impune/
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