Relatório mundial divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em 2021, alerta que quase 46 mil adolescentes morrem por suicídio a cada ano, sendo essa uma das cinco principais causas de morte nessa faixa etária. Em todo o mundo, o comportamento suicida é a quarta causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos. Já a autolesão entre adolescentes oscila bastante entre países (7,3% entre norte-americanos, 10,1% entre australianos e 55,5% entre espanhóis), talvez devido à falta de consenso sobre conceitos, diferença entre os grupos investigados e aspectos geográficos e socioculturais. Uma pesquisa com adolescentes brasileiros das capitais do Espírito Santo (Vitória) e de Mato grosso (Campo Grande) revelou que 90% dos entrevistados afirmaram ter algum colega, amigo ou conhecido que já tenha se machucado de propósito. Apesar desses dados mundiais alarmantes, apenas 2% dos orçamentos governamentais de saúde são direcionados para gastos com saúde mental em todo o mundo, segundo o Unicef.
Buscando contribuir de forma efetiva para minimizar o aumento dos casos de suicídio e de autolesão entre crianças e adolescentes, a psicóloga e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz Joviana Avanci, que conta com apoio da FAPERJ por meio do Auxílio ao Pesquisador Recém-Contratado, reuniu dados de anos de pesquisa sobre os efeitos dos diversos tipos de violência sobre a saúde mental infantojuvenil e lançou o e-book Comportamento Suicida e Autolesão na Infância e Adolescência. O livro, lançado por ocasião da campanha de prevenção ao suicídio “Setembro Amarelo”, é destinado a profissionais de saúde, da educação e do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (em especial a Assistência Social e Conselho Tutelar), busca responder às duas principais questões sobre o tema: o que leva e o que fazer?
Na apresentação da obra, Joviana e os demais envolvidos na pesquisa - Simone Gonçalves de Assis, Adriano da Silva, Aline Ferreira Gonçalves, Nelson de Souza Motta Marriel, Orli Carvalho da Silva Filho, e Pedro Henrique Sampaio Lopes Tavares - buscam informar e dialogar sobre a prevenção do comportamento suicida e da autolesão com os profissionais que estão diariamente envolvidos no cuidado e na atenção a milhares de crianças e adolescentes. O comportamento suicida e a autolesão são relativamente comuns nas primeiras décadas da vida, em especial na adolescência. Mas, os pesquisadores destacam que, sem dúvida, a divulgação de informações seguras é capaz de qualificar intervenções e mudar os rumos desses problemas de saúde mental ainda nas fases iniciais da vida. Entretanto, alertam que, muitas vezes, os ‘sinais’ são pouco reconhecidos, especialmente entre as crianças.
“O fato é que o comportamento suicida e a autolesão podem ser prevenidos e evitados. Prevenir significa tomar qualquer medida que antecipe a ocorrência de um agravo à saúde e, para tanto, precisamos conhecer o que pode ativar e perpetuar os gatilhos para a ideação, planejamento, tentativa, suicídio consumado e a autolesão, para se pensar em formas mais precisas de preveni-los”, esclarece Joviana. Segundo ela, em todo o mundo profissionais e instituições estão voltados a implementar ações e programas de prevenção desses fenômenos, até mesmo porque ainda hoje há profissionais que desqualificam o sofrimento.
Segundo a autora, o objetivo do trabalho, inédito no Brasil, é compreender os sentidos, discursos e práticas de jovens com comportamento suicida e autolesões (que engloba atos de automutilação, incluindo desde as formas mais leves, como arranhaduras, cortes e mordidas até as mais severas, como amputação de membros), bem como a percepção e as estratégias elencadas por profissionais da saúde e da escola na abordagem do tema, priorizando as experiências disseminadas nas redes sociais virtuais. A proposta é de uma abordagem qualitativa, na busca da compreensão do comportamento suicida e das autolesões numa perspectiva contextual, na qual a história de vida, o desenvolvimento humano e a cibercultura são privilegiados.
Coordenadora Geral de Pós-Graduação da Escola Nacional de Saúde Pública e pesquisadora do Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli da Fundação Oswaldo Cruz (Claves/ENSP/Fiocruz), Joviana possui doutorado-sanduíche Fiocruz/Cambridge University e mestrado em Saúde da Mulher e da Criança pelo Instituto Fernandes Figueira, outra unidade da Fiocruz. Seus estudos sobre violência nas escolas já lhe renderam, em 2011, o Prêmio Jabuti na categoria Educação.
Psicóloga alerta que a família deve estar atenta para reconhecer as autolesões (Foto: James-Heilman/Wikpedia) |
Ao considerar o conceito de que o suicídio é uma violência autoinfligida, Joviana passou a estudar como “esse sofrimento tão grande passa a ter como única solução acabar com a própria vida e o que na sociedade leva a esse sofrimento”. Sua maior preocupação é com a saúde mental de crianças e adolescentes, em especial após o advento das redes sociais virtuais, onde usuários podem estimular diversos tipos de violência, entre elas a autolesão e o suicídio. Um grupo importante, em sua opinião, são as crianças a partir dos 8 anos, uma vez que as famílias e/ou cuidadores têm dificuldade de identificar se a lesão foi ou não acidental. Além disso, é grande a subnotificação de suicídios. “Existe um tabu em relação a esse comportamento nessa fase da infância. Quando identificada, impacta muito a família, que costuma ter uma atitude de negação”, explica a pesquisadora.
Para Joviana, é muito importante a identificação e não desvalorização dos comportamentos e sinais. Sexo, idade, cultura e etnia têm implicações importantes na epidemiologia do suicídio. Vários fatores de risco são reconhecidamente associados a distintas causas que interagem entre si, entre os quais problemas médicos, biológicos, ambientais, psiquiátricos e psicológicos, filosófico-existenciais e motivações sociais. O estudo considera que as redes sociais virtuais, enquanto espaços de conexão e interação, propiciam não apenas o estabelecimento de vínculos, mas a rápida propagação de informações que podem surtir efeitos diversos e ainda pouco conhecidos. Esses espaços podem promover a imitação, a manipulação de identidade e a prática da fantasia. Além disso, como a conectividade no ambiente virtual ocorre em tempo real, mostrando a maneira, o lugar e a hora em que um usuário utiliza uma lâmina, por exemplo, a autolesão pode se tornar epidêmica.
A pesquisadora ressalta que é relativamente comum o surgimento de ideias suicidas na adolescência e no início da vida adulta, pois elas fazem parte do desenvolvimento de estratégias para lidar com problemas como o sentido da vida e da morte. Esse pensamento torna-se um problema quando passam a ser a única ou a mais importante alternativa. “Por isso é muito importante que a escola ajude a identificar os sinais e comportamentos, estimulando os jovens a expressarem suas emoções e sentimentos”, ressalta Joviana. A intensidade desses pensamentos, sua profundidade, duração, o contexto em que surgem e a impossibilidade de desligar-se deles são fatores que distinguem um jovem saudável de um que se encontra à margem de uma crise suicida. A situação é agravada quando surgem sentimentos de baixa autoestima, comuns nesta fase do desenvolvimento, bem como quadros psiquiátricos
A pesquisa revelou que o comportamento suicida tem origem multifatorial. A natureza dos fatores de risco inclui desde aspectos genéticos, elementos da história pessoal e familiar, aos fatores culturais e socioeconômicos, acontecimentos estressantes, traços de personalidade, transtornos mentais e fatores psicossociais, como o abuso físico ou sexual, perda ou separação dos pais na infância, instabilidade familiar, isolamento social, desemprego, ansiedade interna, baixa autoestima, desesperança, labilidade do humor, impulsividade, dentre outros.
Joviana Avanci: para a pesquisadora da Fiocruz, o comportamento suicida tem origem multifatorial |
O estudo ressalta que é relevante a noção de “suicídio contagioso”, indicando um excessivo número de suicídios em pequeno intervalo de tempo ou em proximidades geográficas. A imitação serve como “modelo” para sucessivos suicídios, seja entre pessoas próximas ou mesmo decorrente da cobertura da imprensa. Estudos anteriores comprovam este dado ao analisar seis suicídios e oito tentativas de suicídio entre pessoas de todas as idades, ocorridos na cidade de Independência, no Ceará, em 2005. Os pesquisadores encontraram vinculação entre os quatro adolescentes que se suicidaram e os quatro que tentaram suicídio algum tempo depois (eram namorados, irmão ou amigos). Dentre os fatores que protegem os jovens de cometer suicídio estão a menor frequência de transtorno depressivo e de abuso de substâncias, maturidade cognitiva insuficiente para vivenciar profunda desesperança ou plano bem elaborado de suicídio, acesso restrito a meios letais, maior potencial de resiliência e a presença mais comum de rede social de apoio na família e na escola.
Já a autolesão pode se apresentar como lesões leves, como arranhar a pele com as unhas ou se queimar com pontas de cigarros; passando por formas moderadas, como cortes superficiais nos braços, ou atingir formas mais graves como a autoenucleação dos olhos e a autocastração. Outras formas graves encontradas são a introdução de corpos estranhos no organismo, como agulhas e a amputação dos lobos das orelhas. Em geral, as áreas atingidas são facilmente ocultas pelas roupas, para que o comportamento passe despercebido, e incluem braços, coxas e zona abdominal.
A pesquisa ressalta que do ponto de vista do papel da saúde pública, as manifestações de desejo de se matar devem ser tratadas imediatamente independente de sua frequência, uma vez que a reincidência é comum, o que exige a busca por causas mais próximas e evitando-se a consumação do ato. É importante considerar que as fases particularmente mais importantes para se dar atenção são a adolescência e início da vida adulta e que é possível atuar na prevenção do fenômeno atuando nos fatores associados, em especial no papel das relações interpessoais próximas e do contexto social, que exclui, não oferece perspectivas e produz sofrimento. De uma maneira geral, autores enfatizam a necessidade de que os profissionais estejam capacitados para lidar com situações que envolvam o comportamento suicida e a autolesão e defendem a aproximação dos educadores com a família dos jovens para compor uma rede social mais protetora.
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