Em seu livro “O império da escravidão”, Pessoa investigou o complexo de fazendas dos irmãos Joaquim e José Breves, que considera o maior complexo escravista do período. Em 1868, José Breves tinha nove fazendas e 1200 escravos aproximadamente. Joaquim, em 1889 – ano de sua morte – possuía 25 fazendas e havia sido senhor, segundo estimativas de cronistas da época, de três mil escravos, naquela altura já pessoas livres. “Então, acredito que eles detinham o maior complexo de fazendas no Brasil em meados do oitocentos. Eu não conheço nenhum outro caso de dois irmãos com quase quarenta fazendas e cerca de quatro mil escravos”, comenta.
O ingresso do pesquisador nessa área ocorreu em 2005, quando recebeu sua primeira bolsa de pesquisa, ainda na graduação, para trabalhar no projeto “Memórias do Cativeiro” do Laboratório de História Oral e Imagem, da Universidade Federal Fluminense (Labhoi/UFF), grupo ao qual o pesquisador continua vinculado. Em seguida, fez parte da equipe dedicada às pesquisas em três comunidades remanescentes de quilombo localizadas no Sul Fluminense: Santa Rita do Bracuí, em Angra dos Reis, Marambaia, em Mangaratiba, e Pinheiral, município onde estava localizada a sede da fazenda de José Breves.
Nos anos seguintes, participou do processo de digitalização do inventário de José Breves – organizado em 9 volumes –, aberto em 1879, e que permanecia em litígio até o início dos anos 2000. Finalizada a disputa pelo inventário, Pessoa pôde levar as cópias digitais para casa e estudar com mais detalhes o documento que lhe rendeu monografia, dissertação e tese.
O inventário é desdobramento do testamento de José Breves, considerado progressista para a época por doar terras e conceder liberdade para aqueles que havia escravizado, sob a condição de que trabalhassem por mais quatro ou oito anos. Pessoa explica que Joaquim, responsável por executar os pedidos deixados pelo irmão, era avesso aos ideais libertários e dificultou o cumprimento dos planos. No entanto, como o documento trazia a precificação de cada indivíduo, isso facilitou, contraditoriamente, a libertação de muitos que tinham condição de pagar o preço estipulado pela sua liberdade. Para negar a liberdade, Joaquim Breves argumentou na Justiça que já não existiam mais escravos, apenas “libertandos”, o que impediria a antecipação. O imbróglio expõe uma situação curiosa na argumentação judicial na análise do pesquisador. “Joaquim usou a categoria jurídica ‘liberdade’ para defender a escravidão, ao passo que os escravizados se valeram da sua própria precificação como propriedade, ou seja, da escravidão, para pedir sua liberdade”, avalia.
O testamento foi escrito no final da década de 1870, quando o Judiciário passava a acatar com mais frequência os pedidos de liberdade de escravizados. A Lei do Ventre Livre, de 1871, ao dizer que o preço da liberdade era correspondente ao valor da avaliação de cada indivíduo estabelecido no inventário, cumpre um importante papel nessa mudança, pois permitiu aos escravos do complexo cafeeiro dos Breves anteciparem sua liberdade.
Roda de Jongo em frente às ruínas da Fazenda do Pinheiro, a casa-grande de José Breves (Foto: Acervo Labhoi/UFF)
Pessoa destaca que muitos dos escravos do complexo Breves viviam em cativeiro ilegal, inclusive, sem respaldo na legislação brasileira. Em um acordo firmado em 1826 com a Inglaterra, o governo brasileiro se comprometeu a barrar o tráfico de escravos. A lei brasileira que proibiu a escravidão para os africanos que pisarem no País é de 1831, quando os ingleses passaram a tratar o comércio de escravos como pirataria. Em um período de 20 anos, até que uma segunda lei fosse aprovada, cerca de 800 mil africanos foram escravizados ilegalmente. Conhecida como lei Eusébio de Queiroz, a determinação que pôs fim ao tráfico em 1851, apesar de incorporar a lei anterior, não agiu para combater a escravidão daqueles indivíduos que chegaram ao longo das duas décadas passadas.
A explicação sobre os meandros do comércio de africanos na clandestinidade e sua operacionalização no litoral fluminense não está no livro publicado por Pessoa, mas é explorada em seu estágio de pós-doutoramento. “O Complexo Cafeeiro nasce no mesmo instante que o tráfico é colocado na ilegalidade. E aí a classe senhorial tinha esse impasse para resolver. A forma que encontraram foi não abolir a lei [de 1831] por uma questão dessa pressão feita pela Inglaterra e costurar internamente o seu não cumprimento a partir de um acordo político e jurídico com a classe dirigente, com amplo respaldo social”, comenta.
O histórico de descumprimento da lei não passou despercebido naquelas décadas. Inúmeros cronistas denunciavam nos jornais os absurdos e ilegalidades da escravidão. Entre eles, Thiago Pessoa reserva atenção especial ao jornalista, escritor e rábula Luiz Gama (1830-1882). Gama era filho de Luísa Mahin, mulher negra, livre, vinda de Costa Mina e de um português branco, com quem Mahin foi casada e depois o deixou. Com a perda de suas riquezas, o pai de Gama o vendeu como escravo. Mais tarde, o filho conseguiria fugir de seus senhores e provar sua liberdade. Advogado sem formação universitária, estima-se que Luiz Gama tenha ajudado a garantir a liberdade de cerca de 500 pessoas escravizadas, destacando-se como um ativo abolicionista.
A história de Gama ajuda a ilustrar a diferença entre aqueles que foram escravizados no ambiente rural em relação ao ambiente urbano, onde as ideias abolicionistas circulavam com muito mais força. Ao contrário do imaginário social comum, as grandes fazendas com escravos não foram um modelo único, apesar de serem características das plantações de café no Vale do Paraíba. “Nas cidades podemos pensar em diferentes graus de liberdade de um escravo, como, por exemplo, o ‘escravo de ganho’ que trabalhasse na rua do Ouvidor, no centro do Rio. Nesse caso, seja qual fosse a atividade exercida, era preciso repassar uma porcentagem dos ganhos ao senhor que detinha o documento de propriedade daquela pessoa escravizada. Podemos dizer que a vida dos escravizados na cidade às vésperas da abolição, em alguns casos, se assemelhava a de um trabalhador pobre”, comenta Pessoa.
Devido a essa movimentação das diversas frentes dos movimentos abolicionistas, desde a condenação moral do tráfico no mundo ocidental como “comércio da carne humana”, aos ecos da Guerra Civil Americana (1861-1865), evidenciando-se o fato de o Brasil ter sido o último país das Américas a abolir a escravidão, a historiografia tem colocado menos atenção à benevolência da princesa Isabel ao assinar a Lei Áurea em 1888. “A lei foi importante porque consagra uma construção coletiva de décadas, uma série de lutas dos próprios escravizados e de amplo leque da sociedade civil, materializando e institucionalizando essas lutas”, comenta o pesquisador.
O trabalho de Thiago Pessoa com o Complexo dos Breves teve orientação, desde a graduação, da professora Hebe Castro (Fotos: Divulgação)
Após mais de um século da existência do testamento de José Breves, a memória dos remanescentes quilombolas das comunidades visitadas por Pessoa permanece bastante viva em relação à dura vida levada por seus ancestrais. Na comunidade de Santa Rita do Bracuí, por exemplo, que recebera as terras em doação testamentária de José Breves em 1879, os descendentes dos antigos escravos mantém forte laço com às histórias dos seus ancestrais. "É muito interessante porque boa parte deles nunca tocou no testamento. É uma história transmitida geracionalmente, com uma riqueza de detalhes muito impressionante, transformada, ao longo dos séculos, em instrumento de luta e resistência”. Para Thiago Pessoa, a força da memória mantida pelas comunidades quilombolas em contraponto à sua invisibilidade reiterada pelo Estado brasileiro durante todo século XX, em discurso retomado recentemente, demonstra que o último país a abolir a escravidão nas Américas segue refém do seu passado.
Autor: Juliana Passos
Fonte: Faperj
Sítio Online da Publicação: Faperj
Data: 24/01/2019
Publicação Original: http://www.faperj.br/?id=3695.2.2
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