quinta-feira, 30 de junho de 2022

Pesquisa refaz a trajetória de cativos, alforriados e senhores no século XVIII

No século XVIII o Rio de Janeiro era uma das maiores cidades portuárias de desembarques de escravos nas Américas. Pelo porto, à época localizado na Praça XV, centro do Rio de Janeiro, chegavam os principais navios negreiros procedentes da África. Estima-se que do descobrimento (1500) até o ano de 1850 cerca de 12 milhões de africanos foram traficados como cativos até as Américas, onde se tornaram trabalhadores escravos. Mas, ao mesmo tempo em que o Rio de Janeiro era a principal porta de entrada de cativos, era também uma das cidades que mais alforriava escravos.

Com o objetivo de conhecer melhor as culturas políticas trazidas pelos africanos, o impacto demográfico decorrente da intensa chegada de escravos e a mobilidade social conquistada após a alforria durante o antigo regime, o professor e pesquisador de História da África na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Roberto Guedes vem conduzindo o trabalho Cativos, alforriados e senhores: construtores da escravidão e da liberdade (Rio de Janeiro, século XVIII).

“A produção historiográfica que se faz no Brasil sobre escravidão no século XIX é muito rica, mas o tema da escravidão e da liberdade para a cidade do Rio de Janeiro do século XVIII é ainda muito lacunar”, alega o pesquisador, que conta com bolsa de Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ, para conduzir seus estudos. Ele esclarece que, nos últimos anos, uma inovação metodológica passou a cruzar informações de diferentes documentos – como registros paroquiais de batismo, casamento e óbitos com testamentos, livros de notas cartoriais e documentos administrativos – o que ajudou a desvendar trajetórias de cativos, alforriados e senhores no século XVIII. “Ao confrontar as diferentes informações contidas em diversos documentos, encontramos possíveis caminhos de mobilidade social e reinserção social de alforriados e seus descendentes”, explica.

“A entrada de escravos na cidade era muito grande e o Rio de Janeiro funcionava como uma espécie de ‘ponte aérea ’, na época, especialmente com a demanda gerada após a descoberta do ouro em Minas Gerais. Em 1727, o Rio de Janeiro chegou a enviar 2.367 escravos para os garimpos em apenas seis meses. Isto representa quase metade da população carioca de 1687”, esclarece Guedes. O número de alforrias concedidas também era grande, segundo o pesquisador, devido, principalmente, à conjugação de três fatores: a pressão social por maior mobilidade (e alforria significa mobilidade social), à cultura católica de alforria e ao próprio tráfico atlântico de cativos, que renovava constantemente a mão de obra escrava.

Havia muito mais africanos e seus descendentes do que imigrantes portugueses estabelecidos no Rio de Janeiro. Um visitante que esteve na cidade no início do século XIX, o médico cirurgião irlandês Sir James Prior, estimou que o a cidade abrigava 90 mil habitantes, dos quais 1/6 se nomeava como branco: “Muitos brancos, contudo, teriam dificuldade em provar seu direito a esta honra; para eles prevalecem complexões entre o marrom e o amarelo, o rosado europeu seria admitido para muito poucos”. Segundo o pesquisador, o Censo de 1799 constatou que havia um alforriado para cada dois cativos na cidade do Rio de Janeiro. Neste levantamento estatístico, porém, todos os livres foram chamados de brancos, os alforriados de pardos libertos e pretos libertos, e os escravos apenas de escravos.


A alforria chancelava um novo nome e uma nova a 'cor', que não correspondia à raça, mas a um novo status social (Reprodução)

Roberto Guedes explica que conforme os escravos se afastavam do cativeiro, por qualquer tipo de alforria (gratuita, condicional ou paga), sua classificação mudava. Pretos, termo mais atribuído aos escravos (negro era pouco usual) passavam a ser classificados como pardos ou brancos ou não se fazia qualquer registro, para evitar a ‘marca’ que o passado do cativeiro deixara. “O segundo nome dos escravos geralmente era uma referência a uma procedência africana, como Luiza Guiné, Antonio Angola, Bento Congo etc. Mas, somente depois de alforriado o ex-escravo ganhava realmente um sobrenome, na maioria das vezes igual ao do antigo senhor. Assim, o sobrenome era socialmente constituído”, esclarece o pesquisador. De acordo com Guedes, muitos alforriados, como os ex-escravos de ganho, os artesãos, as mulheres do comércio varejista, que quando escravos eram obrigados por seus senhores a realizar algum tipo de trabalho nas ruas, levando para casa o dinheiro apurado, conseguiam juntar algum recurso, comprar escravos e se tornarem senhores. A alforria chancelava um novo nome e uma nova a “cor”, que não tinha nada a ver com raça, mas com o status.

Algumas cartas de alforria e testamentos evidenciam como os alforriados tratavam seus escravos usando termos de “cor” e procedência que não usavam para si e seus parentes, como, por exemplo, ‘negro’, ‘preto’, ‘pardinho’ ou ‘mulatinho’. O diminutivo não só demonstrava que se tratava de filho de escrava como também denotava afeto e alusão à menoridade. De acordo com o pesquisador, nos testamentos em geral o alforriado deixava claro quando havia comprado sua liberdade comunicando: “Comprei minha alforria pelo pagamento de...” No entanto, quando ele, já liberto e senhor, alforriava um escravo seu em troca de pagamento, dizia que fora ele a conceder a alforria, sem citar ou dar ênfase ao pagamento, mesmo tendo recebido por isso.

A transcrição do Registro de um escrito de liberdade do pardo José Morais (foto), passado por José Barreto de Faria Azeredo Coutinho e sua mulher, e apresentada pelo mesmo liberto em vinte e seis de junho de mil setecentos e setenta e cinco, dizia: Digo eu, José Barreto de Faria Azeredo Coutinho, e bem assim minha mulher, Dona Ana Tonrreira [Ferreira] de Azeredo Coutinho, que sem embargo de termos dado já liberdade a José Morais, pardo nosso escravo com condição, é nossa vontade visto o dito nos ter servido a nosso contento e pronto sempre a tudo quanto houve por nós encarregado, dá-lhe e retificar a dita liberdade sem condição alguma, o que por este o fazemos; e poderá ir para onde muito quiser sem contradição alguma por ser assim nossa vontade, e por assim ser verdade lhe passamos este por nós ambos assinados que queremos valha como se fosse escritura pública, e poderá lançar em notas para sua mais validade, e as justiças de Sua Majestade assim o façam cumprir.


O caminho da ciência é a pesquisa colaborativa, defende Guedes

“Refazer esses caminhos é um trabalho artesanal, juntando os cacos e cuidando para não fazer julgamentos, não cair no anacronismo”, pondera Guedes. Diante da tentação de atribuir àquela época ideias e sentimentos atuais, o professor reforça que o mais importante no estudo da História é o distanciamento moral e afetivo. “No caso da escravidão, uma das maiores distopias do nosso mundo atual, precisamos considerar o contexto da época, de uma sociedade que tinha a escravidão como referência para valores políticos, sociais e morais”, justifica.

O professor de História conta que sempre frequentou escolas públicas. Ao terminar o segundo grau no Colégio Pedro II, passou no vestibular para a Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ), cursou mestrado na Universidade Federal Fluminense (UFF), doutorado na UFRJ e pós-doutorado na Universidade de Lisboa e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Tive a sorte de cruzar e aprender com pessoas muito especiais no meu caminho, como o Manolo Florentino, na UFRJ, falecido em 2021; a Sheila Faria, na UFF, e o João Fragoso, na UFRJ”, recorda o professor. Guedes acredita que o caminho da ciência é a pesquisa colaborativa, o esforço coletivo e a interlocução com a comunidade científica brasileira e internacional, “afinal, o Brasil não está apartado do resto do mundo”. Certo do papel das agências de fomento na manutenção da pesquisa no País (ele recebe apoio da FAPERJ desde 2012, quando ganhou bolsa de Jovem Cientista do Nosso Estado), Guedes se considera fruto do processo de redemocratização brasileira. “Nasci em 1970, então, sou da geração que na adolescência e na juventude vivenciou o impacto da Constituição de 1988”, alega o pesquisador.







Autor: Paula Guatimosim
Fonte: faperj
Sítio Online da Publicação: faperj
Data: 30/06/2022
Publicação Original: https://www.faperj.br/?id=123.7.0

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