“Pesquisas integradas com mamíferos na Mata Atlântica: estudos de caso com espécies endêmicas, ameaçadas e exóticas invasoras” é o título do projeto da bióloga Helena de Godoy Bergallo, professora do Departamento de Ecologia do Instituto de Biologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Em seu estudo sobre ecologia de comunidades, populações e história natural ela busca compreender os padrões de riqueza, composição, e abundância de espécies e ocupação do habitat pelos mamíferos nativos e exóticos, bem como suas interações com outros organismos como ectoparasitas e besouros rola-bostas em Unidades de Conservação (UCs) urbanas e rurais, por meio de pesquisas integradas.
Estimativas indicam que a Mata Atlântica abriga cerca de 20 mil espécies vegetais (35% das existentes no Brasil), incluindo espécies endêmicas (aquelas que estão restritas a apenas uma determinada área ou região geográfica) e ameaçadas de extinção; 850 espécies de aves, 370 de anfíbios, 200 de répteis, 270 de mamíferos e 350 de peixes.
Helena esclarece que a fragmentação e a perda de habitat são uma das principais causas da extinção de espécies, pois modificam a conectividade da paisagem, reduzindo uma área contínua a fragmentos menores, inviabilizando a permanência de populações bióticas a longo prazo. A bióloga lembra que em alguns países a situação de determinadas espécies é tão crítica que só a adoção de medidas extremas pode salvá-las. Ela dá o exemplo da Austrália, onde a Conservação da Vida Selvagem precisou construir uma cerca com 44 km de extensão para evitar que espécies invasoras como gatos domésticos tenham acesso às espécies ameaçadas.
A fim de que o conhecimento científico possa ser utilizado para monitorar e manejar os ambientes, potencializando as estratégias e ações de conservação, a pesquisadora optou pelo uso da metodologia de amostragem RAPELD (Protocolos de Inventários Rápidos – RAP - em Pesquisas Ecológicas de Longa Duração - PELD), uma ferramenta que permite a realização de pesquisas integradas. Helena chegou a esse método em 2009, quando recebeu um pedido de ajuda do então Instituto Estadual de Florestas (IEF), hoje Instituto Estadual do Ambiente (Inea), para a elaboração do Plano de Manejo do Parque Estadual da Ilha Grande, localizado na baía de mesmo nome, ao sul do estado do Rio de Janeiro, onde a Uerj tem uma base de pesquisa, o Centro de Estudos Ambientais e de Desenvolvimento Sustentável (Ceads).
“Ao fazer o mapa dos locais onde os pesquisadores estavam desenvolvendo seus estudos, constatei que as ações estavam concentradas em apenas duas áreas, muito restritas às bordas da Unidade de Conservação, e pouco em seu interior”, diz a bióloga. Foi com auxílio do programa Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ, que Helena instalou o Rapeld no Parque Estadual da Ilha Grande. O método estabelece módulos ou grades com parcelas a cada quilômetro, delimitando as áreas de estudo, abrindo e sinalizando trilhas, além de integrar pesquisas de diversos organismos da flora e da fauna, mas também de solos. Há também parcelas aquáticas e ripárias, para estudos de organismos mais associados a esses ambientes, e o tamanho dos módulos ou grades pode variar.
Exemplar de um Rato-de-espinho (Trinomys sp), um dos mamíferos encontrados no Parque Estadual da Ilha Grande.
A pesquisadora ressalta a vantagem de a metodologia ser modular, respeitando as peculiaridades das diversas áreas, mas observando sempre uma mesma escala, o que permite a comparação e estudos em todo o território nacional e no exterior. Segundo Helena, além das pesquisas serem desenvolvidas em uma mesma escala espacial, para que haja a integração necessária, os dados coletados precisam ser compartilhados. A disponibilização de dados é crucial não apenas para os pesquisadores, mas também para orientar os tomadores de decisão que, muitas vezes, precisam de acesso rápido as informações. Para suprir esta carência, o programa prevê ações de capacitação de pesquisadores, gestores e estudantes na infraestrutura Rapeld, e no gerenciamento de dados e metadados.
O método Rapeld está associado à Rede de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio), programa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). A rede PPBio da Mata Atlântica (PPBioMA) é coordenada por Helena, que também atua como Coordenadora Científica do Centro de Estudos Ambientais e Desenvolvimento Sustentável (Ceads), vinculado à Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Uerj, e Conselheira da Uerj na Comissão Estadual de Controle Ambiental (CECA) associado ao Inea.
A pesquisadora conta que na Amazônia, além de integrar as pesquisas, o Rapeld vem integrando a comunidade, que não só colabora com a coleta de dados como vem fortalecendo seus vínculos comunitários e o pertencimento. A metodologia está começando a ser implantada também no Parque Natural Municipal de Nova Iguaçu, criado em 1998 e com área de 1.000 hectares distribuídos no Maciço do Mendanha, formado pelas serras do Mendanha, Gericinó e Madureira. O objetivo é integrar a pesquisa a demais unidades de conservação, como a Reserva Biológica do Tinguá, e a outras áreas de proteção ambiental da região, como a APA do Guandu, onde o grande desafio é a proximidade com a matriz urbana. O Rapeld também foi implantado na Reserva Natural da Vale, com 23 mil hectares mantidos pela mineradora no município de Linhares; e na vizinha Reserva Biológica de Sooretama, localizada entre os municípios de Sooretama e Linhares (ambos no Espírito Santo), cujo bloco florestal de 50.000 hectares é cortado pela BR 101.
As pesquisas vêm indicando que os principais responsáveis pelas mudanças em taxas de ocupação ou diminuição nas densidades dos mamíferos da Mata Atlântica são as ações antrópicas, o cão e o gato. As ações antrópicas vão desde a caça até a abertura de trilhas e estradas que impactam os mamíferos. A caça, apesar de proibida por Lei, continua sendo uma atividade frequente em áreas de conservação. “Quando entramos pela mata, com muita frequência encontramos vestígios de caça”, afirma a pesquisadora. Nossos estudos têm mostrado o impacto da caça em várias espécies de mamíferos como, por exemplo, tatus, antas e porcos, que têm maior probabilidade de ocupar áreas ou de serem detectados onde não há caça.
O cão, muitas vezes, acompanha o homem na caça e, em outras, é um predador porque faz parte do seu instinto. “Uma vez eu estava em uma das trilhas da Ilha Grande e um cachorro começou a me seguir. Não adiantava tentar espantá-lo. De repente ele sumiu e voltou depois com um tatu na boca”, conta Helena. Ela ressalta que as unidades de conservação são criadas para conservar nossa biodiversidade, mas a presença do cão e outras espécies invasoras afeta a forma como as espécies ocupam as áreas. “As espécies muitas vezes ficam espremidas na parte mais interna da reserva para evitar contato com os cães, que geralmente estão na borda. Além disso, o cão leva e traz doenças para espécies nativas”, explica a bióloga. Ela dá o exemplo de um estudo que sua equipe desenvolveu com os ectoparasitas de cães domésticos na Ilha Grande, no qual foram registradas três novas espécies de carrapatos, que na fase adulta são encontrados nos carnívoros, como o cão, mas em sua forma de larva e ninfa parasitam principalmente pequenos roedores. Isso indica que os cães estão entrando na floresta.
O gato doméstico, que também tem o hábito de caçar, costuma trazer a presa para mostrar ao seu dono, como se fosse um presente. A pesquisadora explica que uma das formas de engajar a comunidade nas pesquisas é pedir para que elas guardem as presas trazidas por seus gatos, como foi feito na comunidade do Abraão, na Ilha Grande. Com isso, alguns participantes da pesquisa se deram conta do impacto que os gatos domésticos causavam. “No cenário que projetamos, estimamos que para diminuir a quantidade de gatos na Vila do Abraão na Ilha Grande em 30 anos, precisaremos castrar ou remover 80% das fêmeas. Além disso, é crucial que os donos de cães e gatos tenham uma guarda responsável, castrem seus animais de estimação, os alimentem e não os deixem eles soltos”, explica a pesquisadora.
Nena Bergallo, como a pesquisadora é conhecida, explora o Parque Estadual do Desengano (Foto: Riva Leão)
O estudo dos mamíferos está sempre associado aos demais aspectos da Mata Atlântica, como, por exemplo, a presença e densidade de árvores exóticas, como a jaqueira, originária da Ásia. Por possuir frutos muito grandes e produzir muitas sementes, vão dominando a mata. Suas sementes envoltas a uma polpa carnuda atraem e favorecem o estabelecimento de roedores e marsupiais e o desaparecimento de outros. “Importante dispersor de sementes, o gambá, por exemplo, acaba por se acomodar nos arredores da jaqueira, deixando de lado seu importante trabalho de semeador”, exemplifica Helena.
As pesquisas com o besouro rola-bosta também têm sua importância. Animal que se alimenta de fezes de outros animais, o rola-bosta é considerado um engenheiro do ecossistema. Ao rolar e enterrar as fezes eles adubam a área e auxiliam na decomposição da matéria orgânica. Além disso, ao cavar buracos, aumentam a aeração do solo. O rola-bosta é considerado um bioindicador ambiental e por possuir estreita relação com os mamíferos, áreas com maiores riquezas de espécies de rola-bosta são também aquelas com maiores riquezas de mamíferos. Por isso o Laboratório de Ecologia de Mamíferos começou a trabalhar com esses coleópteros tão interessantes associados aos mamíferos.
Helena tem uma equipe composta por três pesquisadores de pós-doutorado, cada qual com seu perfil distinto, todos bolsistas da FAPERJ. Elizabete Captivo Lourenço está estudando a influência da saúde ambiental na saúde dos morcegos. Átilla Colombo Ferreguetti está avaliando os efeitos diretos e indiretos da fragmentação da Mata Atlântica nas comunidades de mamíferos de médio e grande porte ao longo do sudeste do Brasil. Já Luciana de Moraes Costa monitora os morcegos utilizando algumas técnicas, entre elas a bioacústica, que capta sons de animais, como dos morcegos insetívoros, que possuem importante papel no controle de insetos. Com a bioacústica a equipe identificou na Ilha Grande o Promops centralis, uma nova espécie de morcego para o estado do Rio de Janeiro. Compõem também a equipe cinco doutorandos, três mestrandos e uma técnica.
Autor: Paula Guatimosim
Fonte: FAPERJ
Sítio Online da Publicação: FAPERJ
Data: 17/02/2022
Publicação Original: http://www.faperj.br/?id=4418.2.1
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