Entre 120 mil e 12 mil anos atrás, o clima foi bem mais frio no planeta. Tanto no inverno como no verão, as temperaturas médias eram cerca de 16 graus Celsius (°C) mais baixas do que as medidas hoje próximo ao polo no hemisfério Norte. Esses 108 mil anos, no entanto, não foram de frio contínuo e uniforme. Houve 26 períodos em que a temperatura caiu outros 10 °C e as geleiras cobriram boa parte das terras que atualmente formam a América do Norte e o norte da Europa e da Ásia. Seis desses períodos são especiais. Recebem o nome de eventos Heinrich – homenagem a Hartmut Heinrich, geólogo e climatologista alemão que os descreveu em 1988 – e foram marcados por um resfriamento ainda mais drástico e abrupto. Em questão de anos, as temperaturas teriam baixado ainda mais e as geleiras avançado em direção ao equador, com a zona de ocorrência de icebergs chegando à península Ibérica e ao norte da África.
Nos eventos Heinrich, que duraram de centenas a poucos milhares de anos, a precipitação mais intensa de neve teria feito os glaciares continentais e as plataformas de gelo que avançavam sobre o mar se partirem e lançarem uma verdadeira armada de icebergs nas regiões subtropicais do Atlântico Norte. O frio e a alteração da salinidade do oceano teriam modificado o transporte de calor ao norte do equador e alterado a circulação de ventos que carregam umidade, afetando o clima na América do Sul. Aqui, as transformações foram menos radicais. As temperaturas ficaram 5 °C mais baixas e não surgiram geleiras, mas choveu muito mais. Em certas ocasiões, a área que hoje corresponde ao centro-leste do Brasil teria ficado úmida por tanto tempo que setores da Mata Atlântica no Nordeste teriam se expandido a ponto de se juntar à floresta amazônica.
“Os eventos Heinrich certamente intensificaram a pluviosidade na região centro-leste do Brasil”, afirma o geólogo Nicolás Stríkis, da Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro. Stríkis e colaboradores do Brasil e do exterior apresentaram essa conclusão no início de abril em um artigo publicado na revista científica PNAS. Eles constataram que os eventos Heinrich fizeram chover mais no centro-leste brasileiro depois de analisar rochas formadas nos últimos 100 mil anos em cavernas de Minas Gerais e da Bahia. A água dos rios e das chuvas que se infiltra pelo teto das cavernas calcárias dissolve a rocha e, ao gotejar no chão, volta a se solidificar, formando os espeleotemas. Essas rochas crescem acompanhando o volume das chuvas e armazenam informações químicas da água e do calcário do período em que se formaram, permitindo reconstituir o clima do passado.
Durante o doutorado, concluído em 2015 no Instituto de Geociências da Universi-dade de São Paulo (IGc-USP), Stríkis e seu orientador, Francisco William da Cruz Junior, recolheram cerca de 50 espeleotemas nas cavernas Lapa Grande e Lapa Sem Fim, respectivamente, nos municípios de Montalvânia e Luislândia, região de Cerrado no norte de Minas, e nas cavernas Paixão e Marota, em Andaraí, no Cerrado baiano. Eles mediram a proporção entre duas variedades (isótopos) de oxigênio encontradas na água e no calcário de 6 mil amostras extraídas de 13 espeleotemas e, com base nesses dados, recriaram o perfil de umidade para a região nos últimos 85 mil anos.
Filipa Naughton, especialista em paleoclima do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, ajudou os brasileiros a confrontar as datas dos períodos de mais chuva no centro-leste do país com as dos eventos Heinrich no Atlântico Norte. Com o derretimento dos icebergs formados nas épocas de frio extremo, sedimentos mais espessos (variando de areia fina a grossa) cobriram a lama fina do fundo do oceano. Um testemunho de sedimentos marinhos coletado em 1995 no norte de Portugal guarda vestígios dos icebergs de seis eventos Heinrich (HS, do inglês Heinrich stadials), que coincidem com as fases de temperatura mais baixa da última glaciação.
“Na América do Sul, os eventos Heinrich produziram mudanças de grande magnitude no clima, que, em poucas décadas, pode ter passado de seco a úmido”, explica Cruz. Os espeleotemas de Minas e da Bahia indicam que choveu muito nessa região do Brasil em cinco dos seis eventos Heinrich, que ocorreram, em média, em intervalos de 10 mil anos. Choveu mais e por mais tempo por volta de 48 mil anos atrás, no evento Heinrich número 5 (HS-5), e há 39 mil anos, no HS-4 – cada um deles durou de 1,5 mil a 3 mil anos. O aumento das chuvas observado agora por Stríkis e Cruz no Cerrado já tinha sido identificado pelo geólogo Augusto Auler em uma área de Caatinga. No início dos anos 2000, durante estágio de pós-doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Auler trabalhou no mapeamento da Toca da Boa Vista – a mais extensa caverna brasileira, com 120 quilômetros de galerias – e coletou espeleotemas ali e em duas outras cavernas de Campo Formoso, município que fica em uma região semiárida no norte da Bahia.
A datação e a análise dos espeleotemas, realizada em parceria com pesquisadores estrangeiros, permitiram reconstituir o padrão de chuvas regional nos últimos 210 mil anos. Segundo os dados, nem sempre foi tão seco ali. Houve longos períodos de baixa umidade, mas a cada 20 mil anos o clima se tornava mais chuvoso, relataram os pesquisadores em um artigo de 2004 na revista Nature. As épocas de maior pluviosidade coincidiram com quatro eventos Heinrich da última glaciação (HS-1, HS-4, HS-5 e HS-6). Um deles, o HS-4, durou na região cerca de 3 mil anos, segundo os pesquisadores, tempo suficiente para alterar o perfil da flora local e permitir o surgimento de corredores de uma vegetação mais densa que pode ter conectado a Mata Atlântica, hoje distante 500 quilômetros em linha reta de Campo Formoso, à floresta amazônica, que fica a mais de 1,5 mil quilômetros dali.
Já naquela época os pesquisadores encontraram indícios de que vegetações mais verdes e altivas, típicas de clima úmido, teriam existido onde hoje é a Caatinga. Não muito distante das cavernas, a paleobotânica Patrícia Cristalli, então aluna de doutorado no IGc-USP, encontrou nos vales dos rios Salitre e Jacaré, na Bahia, rochas calcárias com idade variando de 11 mil a mais de 600 mil anos que continham folhas fossilizadas de plantas típica da Mata Atlântica e da floresta amazônica. Conhecidas pelo nome de tufa, essas rochas se formam no fundo de rios ricos em carbonato de cálcio que existiram no passado e depois secaram. “As tufas são um indício de que houve água corrente naquela região”, conta Cruz, que participou da expedição de coleta.
Um pouco antes, em 1999, o palinólogo Paulo Eduardo de Oliveira já havia encontrado em Pilão Arcado, uma área de dunas cercada por Caatinga no noroeste da Bahia, sedimentos com 11 mil anos de idade contendo pólen fossilizado de árvores amazônicas de grande porte, como as do gênero Simarouba, que podem alcançar 35 metros. “Em algumas áreas de Caatinga, onde hoje tem muito cacto, já houve florestas típicas de clima mais úmido, com espécies hoje comuns na floresta amazônica”, conta Oliveira, atualmente professor no IGc-USP. “As tufas mostravam no nível macroscópico as evidências que eu havia observado no microscópico”, explica o pesquisador, que também encontrou em sedimentos da última glaciação grãos de pólen de árvores da mata de araucária no atual Cerrado mineiro.
Esses e outros registros de pólen fossilizado, somados às informações de pluviosidade obtidas em cavernas do Brasil, do Peru e da Bolívia, resultado de projetos que investigam a origem da biodiversidade na Mata Atlântica e na floresta amazônica, reforçam a hipótese de que a vegetação da Amazônia e da Mata Atlântica teriam se unido em mais de um momento num passado não tão distante. “Esses períodos mais úmidos com alguns milhares de anos de duração podem ter permitido a formação intermitente de corredores de vegetação entre essas florestas”, supõe Stríkis.
Projetos
1. Paleoclimatologia e estudo da dinâmica atual em sistemas cársticos do Brasil Central: implicações para interpretações paleoclimáticas com base em registros de espeleotemas (nº 15/14327-7); Modalidade Bolsa no Brasil – Pós-doutorado; Pesquisador responsável Francisco William da Cruz Junior (USP); BeneficiárioNicolás Misailidis Stríkis; Investimento R$ 43.283,70
2. Dimensions US-BIOTA São Paulo: integrando disciplinas para a predição da biodiversidade da Floresta Atlântica no Brasil (nº 13/50297-0); Modalidade Projeto Temático; Programa Biota-FAPESP; Convênio NSF-Dimensions of Biodiversity e BIOTA; Pesquisadoras responsáveis Cristina Yumi Miyaki (USP) e Ana Carolina Carnaval (CUNY); Investimento R$ 4.951.227,16
3. Estruturação e evolução da biota amazônica e seu ambiente: uma abordagem integrativa (nº 12/50260-6); Modalidade Projeto Temático; Programa Biota-FAPESP; Convênio NSF-Dimensions of Biodiversity e BIOTA; Pesquisadores responsáveis Lúcia Garcez Lohmann (USP) e Joel Cracraft (AMNH); InvestimentoR$ 5.232.775,66
Artigos científicos
STRÍKIS, N. M. et al. South American monsoon response to iceberg discharge in the North Atlantic. PNAS. v. 115, n. 15, p. 3788-93. 10 abr. 2018.
WANG, X. et al. Wet periods in northeastern Brazil over the past 210 kyr linked to distant climate anomalies. Nature. v. 432, p. 740-3. 9 dez. 2004.
OLIVEIRA, P. E. et al. Late Pleistocene/Holocene climatic and vegetational history of the Brazilian caatinga: the fossil dunes of the middle São Francisco River. Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology. v. 152, n. 3, p. 319-37. Set. 1999.
Autor: Revista Pesquisa FAPERJ
Fonte: Revista Pesquisa FAPERJ
Sítio Online da Publicação: Revista Pesquisa FAPERJ
Data de Publicação: 10/07/2018
Publicação Original: http://revistapesquisa.fapesp.br/2018/05/23/a-chuva-que-uniu-duas-florestas/
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