quinta-feira, 12 de julho de 2018

Incidência oculta

Mais de 25 mil novos casos de hanseníase por ano colocam o Brasil no segundo lugar do mundo, atrás apenas da Índia, no ranking dos países com maior ritmo de crescimento da doença e também entre os mais afetados. Apesar disso, o Brasil está próximo de atingir a meta estipulada pela Organização Mundial da Saúde – 1 caso a cada 10 mil habitantes – para que a hanseníase deixe de ser considerada um problema de saúde pública. A taxa de detecção é de 1,22 caso por 10 mil e apresenta tendência de queda: entre 2007 e 2016, o número de novos casos de hanseníase caiu 37% no Brasil, segundo o Ministério da Saúde.

Esses dados seriam animadores, não fosse por um detalhe: por trás desses números podem existir muitos doentes não diagnosticados. É o que indica um estudo publicado em fevereiro deste ano na revista PLOS Neglected Tropical Diseases. O trabalho foi feito por pesquisadores da Fundação de Dermatologia Tropical e Venereologia Alfredo da Matta (Fuam), órgão vinculado à Secretaria de Saúde do Amazonas, em colaboração com a Universidade do Estado do Amazonas e outras instituições. Os resultados do estudo sugerem que, em Manaus, a incidência de hanseníase em crianças e adolescentes com menos de 15 anos de idade é 17 vezes superior à taxa registrada anteriormente para a faixa etária na cidade. Em 2013, a taxa na capital amazonense foi de 0,68 caso por 10 mil, mas a pesquisa da Fuam registrou a ocorrência de 11,58 casos por 10 mil, indicando subnotificação da doença.

O estudo foi realizado em 277 das 622 escolas públicas de Manaus. Dentre 34.547 estudantes examinados, foram encontrados 40 novos casos de hanseníase. Segundo a dermatologista Carolina Talhari, coordenadora da pesquisa, o número preocupa sobretudo pela faixa etária dos doentes. “Do ponto de vista epidemiológico, a existência de crianças com hanseníase significa a presença de bacilos circulantes na comunidade”, alerta.

A hanseníase afeta todas as idades, mas a ocorrência em crianças e adolescentes menores de 15 anos é um importante marcador epidemiológico para a doença, explica a pesquisadora. Antigamente conhecida como lepra, a hanseníase é causada pela bactéria Mycobacterium leprae, que é transmitida de pessoa para pessoa por meio do contato com secreções liberadas na tosse ou espirro de pessoas infectadas e sem tratamento. A enfermidade afeta os nervos periféricos e provoca manchas esbranquiçadas ou avermelhadas na pele, que perde a sensibilidade. Seu tempo de incubação é longo, de cinco a 10 anos até o aparecimento dos sintomas. Por isso, quando se encontra um adulto infectado, é difícil precisar quanto tempo passou desde a exposição à bactéria. Já a detecção em crianças indica a existência de focos de transmissão ativos, em geral no ambiente domiciliar.


Criança passa por exame dermatológico em Manaus em janeiro deste anoImagem: Altemar Alcantara / Semcom

Doença de aglomeração
No estudo de Manaus, verificou-se que 52,5% dos casos de crianças recém-diagnosticadas tiveram contato em casa com ao menos uma pessoa infectada. Os avós foram os transmissores em 52,4% dos casos; os tios em 14,3%; e pais em 9,5%. “A contaminação da criança ocorreu antes do início do tratamento do adulto, pois sabemos que a primeira dose supervisionada da poliquimioterapia fragmenta os bacilos, interrompendo a transmissão”, conta a epidemiologista Valderiza Pedrosa, pesquisadora da Fuam e primeira autora do artigo da PLOS Neglected Tropical Diseases. O tratamento, disponível de graça na rede pública de saúde, envolve a administração de três drogas (sulfona, rifampicina e clofazimina). O esquema terapêutico é eficaz, sem muitos efeitos colaterais, mas demora de 9 a 18 meses.

Os pesquisadores também examinaram 196 pessoas que conviviam com as crianças infectadas, no ambiente doméstico ou em casas vizinhas. Eles defendem que é importante avaliar pessoas não aparentadas que more perto dos infectados, visto que uma pesquisa feita há cinco anos indicou que a taxa de detecção era similar tanto nos familiares dos pacientes como nos vizinhos.

Esse estudo, publicado em 2013 pela PLOS Neglected Tropical Diseases, foi realizado pelo Instituto de Medicina Tropical da Universidade Federal do Rio Grande do Norte na cidade de Mossoró, considerada hiperendêmica para a hanseníase. A professora Selma Maria Bezerra Jerônimo, diretora do instituto, esclarece como ocorre a transmissão do bacilo entre vizinhos: “O bacilo fica suspenso no ar e sobrevive por alguns dias no ambiente. Ocorre que, em muitas localidades, as casas são conjugadas com meia parede e um telhado comum, sem forro. As pessoas compartilham o mesmo ar contaminado”.

Além da contínua exposição ao bacilo, existem também fatores genéticos envolvidos na epidemiologia da hanseníase. Embora a convivência com uma pessoa infectada e não tratada seja o maior fator de risco para a contaminação, a maioria das pessoas expostas não desenvolve a doença. No entanto, o grupo de pesquisa da Fuam chegou a encontrar uma família na qual a doença acometeu três gerações.

O geneticista Marcelo Távora Mira, professor do Programa de Pós-graduação em Ciência da Saúde da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, explica que o componente genético define a suscetibilidade da pessoa a contrair a doença. “É pouco provável que exista o ‘gene da hanseníase’. Hoje as pesquisas apontam para um efeito genético causado não por um ou poucos genes, mas, sim, por uma dezena de genes, cada um contribuindo parcialmente para o efeito total observado”, afirma Mira. “No entanto, ainda estamos distantes do ponto em que um teste genético possa ser aplicado para identificar indivíduos suscetíveis.” Segundo o geneticista, para enfrentar a hanseníase, o diagnóstico precoce ainda é a ação essencial e depende do treinamento de médicos e das equipes de apoio dos serviços públicos de saúde.

Dados conflitantes
Segundo nota da assessoria de imprensa do Ministério da Saúde, dados preliminares de 2017 indicam uma incidência de 0,6 caso de hanseníase por 10 mil habitantes de Manaus, ou seja, 127 casos novos diagnosticados, sendo quatro em menores de 15 anos. O órgão informa que os resultados oficiais de prevalência da doença no Brasil levam em conta pacientes de todas as idades. Dessa forma, argumenta, os resultados publicados no artigo da PLOS Neglected Tropical Diseases, que mirou crianças e adolescentes com menos de 15 anos, não podem ser comparados com os dados oficiais. Carolina Talhari discorda. “A taxa de detecção de hanseníase em crianças encontrada em nosso estudo foi comparada com a taxa oficial de detecção para a mesma faixa etária”, afirma. “É preciso investir na busca ativa e na detecção precoce dos casos.”

Para Marco Andrey Cipriani Frade, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Hansenologia, os números da pesquisa de Manaus não representam casos isolados. Eles confirmam um cenário preocupante que tem sido descrito por diversos estudos. “Estamos batendo nessa tecla desde 2012”, diz Frade.

O médico participou de pesquisas em várias localidades nas quais também foram constatados casos de hanseníase não diagnosticados em crianças. Nas cidades de Oriximiná e Castanhal, ambas no Pará, foram detectados 109 novos casos entre 754 pessoas examinadas (incidência de 14,4%), das quais 40 eram crianças com menos de 15 anos de idade. O estudo foi publicado em 2015 no periódico BMC Infectious Diseases. O Pará está entre os estados brasileiros mais afetados, assim como Maranhão, Piauí, Rondônia, Roraima e Pernambuco. A incidência é ainda maior em Tocantins e Mato Grosso, considerados hiperendêmicos.

Os pesquisadores da FMRP-USP não se concentraram apenas nos estados de maior incidência de hanseníase. No município de Jardinópolis, distante uns 20 quilômetros de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, encontraram 24 novos casos da doença entre julho e dezembro de 2015. Além de medir a incidência (número de casos novos), também verificaram a prevalência (total de casos). “Em 2014, a prevalência da hanseníase em Jardinópolis foi de 0,73 caso para cada grupo de 10 mil habitantes. Em 2015 e 2016, com a intensificação da busca ativa de casos pela equipe do Centro de Referência Nacional em Dermatologia Sanitária do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, os índices subiram, respectivamente, para 4,4 e 23,6”, explica Frade.

Segundo o médico, os profissionais da saúde têm dificuldade em diagnosticar a doença porque falta preparo e há a noção errônea de que a hanseníase está deixando de ser um problema de saúde pública no país. “Quem procura e sabe o que está buscando acha a doença”, afirma.

Artigos científicos
PEDROSA, V. L. et al. Leprosy among schoolchildren in the Amazon region: A cross-sectional study of active search and possible source of infection by contact tracing. PLOS Neglected Tropical Diseases. 26 fev. 2018.
MOURA, M. L. et al. Active surveillance of Hansen’s Disease (leprosy): Importance for case finding among extra-domiciliary contacts. PLOS Neglected Tropical Diseases. 14 mar. 2013.
BARRETO, J. G. et al. Spatial epidemiology and serologic cohorts increase the early detection of leprosy. BMC Infectious Diseases. 16 nov. 2015.




Autor: Revista Pesquisa FAPERJ
Fonte: Revista Pesquisa FAPERJ
Sítio Online da Publicação: Revista Pesquisa FAPERJ
Data de Publicação: 10/07/2018
Publicação Original: http://revistapesquisa.fapesp.br/2018/05/23/incidencia-oculta/

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