sexta-feira, 31 de maio de 2019

Energia Solar, mas sem sol. Como é possível?


Foto: EBC


Por Michelle Martins

Já pensou não precisar mais usar o telhado para produzir energia solar em sua casa ou empresa?

Chamada de a nova geração de células solares orgânicas, elas não precisam mais ficar expostas diretamente ao sol para captá-lo e transformá-lo em energia elétrica, basta estarem instaladas em um ambiente com luz natural.

Isso quer dizer que a eletricidade será gerada com a claridade natural, mesmo em ambientes internos.

O estudo foi apresentado no Japão pelo pesquisador Ryota Arai e seus colegas da Universidade Kyushu e da empresa Ricoh.

Eles explicam que o trabalho consistiu em selecionar os melhores materiais para compor células solares orgânicas capazes de gerar eletricidade de forma eficiente em ambientes de baixa iluminação.

Mas, embora seja uma revolução no setor, a nova tecnologia ainda está longe da viabilidade entregue pelas tradicionais placas de silício, as mais utilizadas hoje na geração de energia solar fotovoltaica.

As células solares orgânicas são flexíveis e baratas, mas ainda estão correndo atrás do silício em termos de eficiência na conversão da luz em eletricidade.

Segundo os cientistas, os estudos estão avançando para viabilizar o uso da tecnologia de forma a alimentar os aparelhos elétricos sem a necessidade de fios. Vamos aguardar!

Enquanto isso, os painéis solares atualmente instalados sobre os telhados produzem energia limpa e ainda podem trazer até 95% de redução no valor da conta de energia elétrica.

Através da instalação de um conjunto de equipamentos que formam os chamados sistemas fotovoltaicos conectados à rede (On-Grid), consumidores conseguem gerar sua própria energia com a luz do sol e trocar ela pela energia da rede durante a noite.

Você pode imaginar que não existe geração de energia solar no período noturno, não é mesmo?

Digamos que se trata de uma fonte intermitente que não pode ser fornecida continuamente devido a fatores não controláveis.

Por esse motivo, nesses sistemas a energia gerada no dia e não consumida é injetada na rede e emprestada à distribuidora, que a devolve ao consumidor na forma de créditos energéticos.

Esses créditos são usados para abater da energia consumida da rede durante a noite, o que permite manter a sua casa sempre abastecida pela energia elétrica que você mesmo produziu.

Essa é a razão pela qual os sistemas conectados à rede são os que mais se espalham pelo Brasil e pelo mundo.

Através do segmento de geração distribuída regulado pela ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), mais de 72 mil brasileiros hoje utilizam esses geradores solares como fonte da própria energia, um público que deve chegar a 886.700 deles até 2024, segundo a projeção da própria ANEEL.

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 31/05/2019



Autor: EcoDebate
Fonte: EcoDebate
Sítio Online da Publicação: EcoDebate
Data: 31/05/2019
Publicação Original: https://www.ecodebate.com.br/2019/05/31/energia-solar-mas-sem-sol-como-e-possivel/

Trocar a água por CO2 atmosférico capturado pode tornar o fracking mais ecológico e mais eficaz

Cientistas da Academia Chinesa de Ciências e da Universidade de Petróleo da China (Beijing) demonstraram que o CO2 pode produzir um melhor fluido de fraturamento hidráulico (fracking) do que a água.

A pesquisa, publicada em 30 de maio na revista Joule , poderia ajudar a preparar o caminho para uma forma mais ecologicamente correta de fracking que seria um mecanismo para armazenar CO2 atmosférico capturado.

CellPressNews*

O fracking é uma técnica usada para extrair recursos de reservatórios não convencionais nos quais o fluido (geralmente água misturada com areia, agentes espumantes, biocidas e outros produtos químicos) é injetado na rocha, fraturando-a para liberar os recursos dentro dela. Dos cerca de 7 a 15 milhões de litros de fluido injetado, 30% a 50% permanecem na formação rochosa após o término da extração. O alto consumo de água, os riscos ambientais e os frequentes problemas de produção levaram a preocupações com o fracking entre especialistas do setor e defensores do meio ambiente.

“A fratura não aquosa pode ser uma solução potencial para contornar esses problemas”, diz Nannan Sun, pesquisador do Instituto de Pesquisa Avançada de Xangai da Academia Chinesa de Ciências. “Escolhemos o fraturamento de CO2 a partir de uma gama de opções, porque o processo inclui múltiplos benefícios. No entanto, ainda não tínhamos uma compreensão fundamental da tecnologia, o que é muito importante para seu desenvolvimento e implantação posteriores.”

Os benefícios da fraturação do CO2 incluem a eliminação da necessidade de um grande suprimento de água (o que tornaria o fraturamento viável em locais áridos), reduzindo o risco de danos aos reservatórios (como acontece frequentemente quando soluções aquosas criam bloqueios na formação rochosa) e repositório para CO2 capturado.

No entanto, o CO2 não é susceptível de se tornar comumente usado como fluido de fraturamento, a menos que seja mais eficaz do que a água na produção de recursos. Para investigar as diferenças entre o CO2 e a água como fluidos de fraturamento em um nível microscópico, Sun e sua equipe coletaram afloramentos de xisto de Chongqing, na China, e fraturaram-nos com ambos os fluidos. Eles descobriram que o CO2 superou a água, criando redes complexas de fraturas com volumes estimulados significativamente maiores.

“Nós demonstramos que o CO2 tem maior mobilidade do que a água e, portanto, a pressão de injeção pode ser melhor entregue na porosidade natural da formação”, diz Sun. “Isso muda o mecanismo pelo qual as fraturas são criadas, gerando redes de fraturas mais complexas que resultam em uma produção de gás de xisto mais eficiente”.

Embora os pesquisadores acreditem que esta tecnologia de fraturamento hidráulico será escalável, seu desenvolvimento em larga escala está atualmente limitado pela disponibilidade de CO2. O custo do CO2 capturado a partir de fontes de emissão ainda é proibitivamente caro para tornar o CO2 uma substituição de fluido de fracking em toda a indústria.

A equipe também observa que, uma vez que o CO2 tenha sido injetado na fratura, ela adquire uma baixa viscosidade que inibe o transporte efetivo de areia para as fraturas. Como a areia destina-se a abrir as fraturas enquanto o gás de xisto é colhido, é essencial que os cientistas aprendam a melhorar a viscosidade do fluido – mas a equipe ainda não sabe como fazê-lo, mantendo os custos baixos e minimizando a pegada ambiental.

Como próximos passos, os pesquisadores planejam estudar os limites da tecnologia de fraturamento de CO2 para entender melhor como ela pode ser usada. “Mais investigações são necessárias para identificar os efeitos do tipo de reservatório, as propriedades e condições geomecânicas, a sensibilidade à formação de CO2 e assim por diante”, diz Sun. “Além disso, a cooperação com indústrias será realizada para impulsionar a implementação prática da tecnologia.”

Referência: Joule, Song, Guo, and Zhang et al.: “Fracturing with Carbon Dioxide: From Microscopic Mechanism to Reservoir Application” https://www.cell.com/joule/fulltext/S2542-4351(19)30216-8



* Tradução e edição de Herique Cortez, EcoDebate.

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 31/05/2019




Autor: Herique Cortez
Fonte: EcoDebate
Sítio Online da Publicação: EcoDebate
Data: 31/05/2019
Publicação Original: https://www.ecodebate.com.br/2019/05/31/trocar-a-agua-por-co2-atmosferico-capturado-pode-tornar-o-fracking-mais-ecologico-e-mais-eficaz/

Estudo quantifica os efeitos do lobby político sobre a promulgação de políticas climáticas



Clima enfraquecido pelo lobby

Por Sonia Fernandez.

Apesar de todas as evidências de que os benefícios da redução de gases do efeito estufa superam os custos da regulamentação, até agora, até agora, poucas políticas domésticas sobre mudança climática foram promulgadas em todo o mundo.

Então, diga o professor e economista da UC Santa Barbara, Kyle Menge co-autor Ashwin Rode, um ex-doutorado da UCSB, estudante agora na Universidade de Chicago, em um artigo publicado na revista Nature Climate Change.

“Há uma desconexão impressionante entre o que é necessário para evitar uma mudança climática perigosa e o que realmente foi feito até agora”, disse Meng, professor da Escola Bren de Ciência e Gestão Ambiental e do Departamento de Economia. Uma explicação comum para essa desconexão, acrescentou, é que as jurisdições relutam em adotar a política climática quando podem simplesmente se beneficiar das reduções implementadas por outras jurisdições.

No entanto, dizem Meng e Rode, o processo político que leva à regulação da mudança climática pode ser uma barreira à sua própria legislação.

“Há uma preocupação crescente de que essa falta de ação climática possa ser causada por influências políticas”, disse Meng, que também é diretor do Laboratório de Soluções para o Mercado Ambiental (emLab), com sede em Bren. Fazer lobby entre grupos de interesses especiais e os legisladores que eles visam pode diminuir as chances de colocar tais políticas em prática.

Para ilustrar isso, os pesquisadores examinaram o papel do lobby político no setor privado em torno da Lei Waxman-Markey (WM) de 2009-2010. Também conhecida como Lei Americana de Energia Limpa e Segurança, a conta de energia foi a mais proeminente – e promissora – lei climática dos EUA até hoje. E seu fracasso há quase uma década continua a moldar as políticas climáticas atuais, incluindo a atual incerteza em torno das futuras negociações sobre o clima global.

“Basicamente, sem uma política climática vinculativa dos EUA, há muito pouca pressão para que países do mundo todo se aprovem e adotem seus próprios planos sérios de mitigação climática”, explicou Meng.

Na época em que o projeto de lei foi proposto, de acordo com os pesquisadores, o lobby em torno de WM era chamado de “a soma de todos os lobbies”. No total, as empresas gastaram mais de US $ 700 milhões fazendo lobby do projeto; cerca de 14% foram gastos entre 2009 e 2010. Levando em conta os dados de registros abrangentes de lobby dos EUA e combinando-os com um método empírico para prever o efeito da política no valor das empresas de capital aberto, os pesquisadores puderam estimar como o estoque os valores dessas empresas mudariam se a WM tivesse sido implementada.

Sua abordagem também permitiu que eles determinassem quais empresas deveriam obter ou perder valor da política. Saber quem eram os vencedores e perdedores permitiria aos pesquisadores determinar se eles eram diferencialmente eficazes em influenciar as chances da política. De acordo com as análises estatísticas de Meng e Rode, o lobby de empresas que esperavam perdas era mais eficaz do que o lobby de empresas que esperavam ganhos.

Ao todo, o lobby total dessas empresas reduziu as chances do projeto em 13 pontos percentuais, de 55% para 42%, representando US $ 60 bilhões (2018 dólares) em danos climáticos esperados devido à menor chance de aprovar a política climática dos EUA.

Este é o primeiro estudo a quantificar os efeitos do lobby na alteração da probabilidade de promulgar a política climática. Geralmente, a falta de dados dificulta a análise de quem está gastando quanto pode influenciar o processo, e quais dados existem com frequência não revelam quem ganharia ou perderia ou quanto.

“Nossas descobertas também fornecem um vislumbre de esperança, abrindo caminho para políticas climáticas mais robustas politicamente”, disse Meng. Os autores mostram que as forças políticas que reduziram as chances de WM poderiam ter sido alavancadas para reduzir a oposição política. Por exemplo, a WM era uma lei de limite e comércio que emitia um número “limitado” de permissões de emissão que as empresas regulamentadas podiam negociar para cumprir a política. Algumas dessas licenças são normalmente alocadas livremente para empresas reguladas. Se essas licenças gratuitas forem mais bem direcionadas para empresas oposicionistas, elas podem, por sua vez, reduzir a oposição política contra a política.

“Mudanças sutis de projeto nas políticas climáticas baseadas no mercado podem aliviar a oposição política e aumentar as chances de adoção”, disse Meng.

Referência:

The social cost of lobbying over climate policy
Kyle C. Meng & Ashwin Rode
Nature Climate Change 9, 472–476 (2019)
DOI https://doi.org/10.1038/s41558-019-0489-6


in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 30/05/2019



Autor: EcoDebate
Fonte: EcoDebate
Sítio Online da Publicação: EcoDebate
Data: 30/05/2019
Publicação Original: https://www.ecodebate.com.br/2019/05/31/estudo-quantifica-os-efeitos-do-lobby-politico-sobre-a-promulgacao-de-politicas-climaticas/

Gestão Estratégica dos Recursos Hídricos no contexto do bioma Caatinga, artigo de João Suassuna

O setentrional nordestino, que há seis anos vem enfrentando situações de seca, está em “estado de emergência”. Muitos dos municípios da região, como Campina Grande, na Paraíba, que tem aproximadamente 355 mil habitantes, e Caruaru, em Pernambuco, com 300 mil habitantes, enfrentam problemas de abastecimento de água para o consumo de suas populações e, se não chover os volumes esperados para o atual período das águas, “não há um plano B para o abastecimento do povo”.

As secas da região normalmente ocorrem de forma lenta e gradual, mas a atual agravou-se por causa dos sucessivos períodos de estiagem nos últimos anos. As consequências do fenômeno podem ser observadas em todo o Semiárido onde, desde 2012, com as chuvas ocorrendo abaixo da média, açudes secaram e a agricultura sofreu um impacto muito forte, com a perda de culturas de subsistência como o milho e o feijão, o mesmo ocorrendo com a pecuária (a da Paraíba, por exemplo, diminuiu em cerca de 70%, com a seca de 2013).

A deficiência (muitas vezes, a inexistência) de gestão dos recursos hídricos da região é, atualmente, o maior problema do Nordeste. Como exemplos do uso incorreto das águas podemos citar o açude de Boqueirão de Cabaceiras, na Paraíba, que abastece Campina Grande e mais 18 municípios de seu entorno, que chegou ao volume morto em 2017. Atualmente (maio de 2018), trabalha com cerca de 35% de sua capacidade e em fase de declínio volumétrico, mesmo após os aportes volumétricos provenientes das chuvas ocorridas na quadra chuvosa em vigor e dos volumes da Transposição do Rio São Francisco, a partir de junho de 2017; outras represas igualmente interanuais (aquelas que alcançam a quadra chuvosa do ano subsequente, mesmo com o uso continuado de suas águas), como Coremas e Mãe D’Água, no interior da Paraíba, com capacidade para acumular, juntas, um bilhão e 200 milhões de metros cúbicos de água, atuando hoje com, respectivamente, 20% e 10% de suas capacidades, volumes aquém daqueles necessários para o atendimento das demandas hídricas das populações locais. Uma delas (Coremas) chegou a entrar em colapso em 2017; a represa de Jucazinho, que abastece as cidades de Santa Cruz do Capibaribe e Caruaru, em Pernambuco, os açudes de Itans e Gargalheiras, no RN, que entraram em exaustão; a maior represa do Nordeste, o Castanhão, no Ceará, e a segunda maior, a Armando Ribeiro Gonçalves, no Rio Grande do Norte, que entraram em volumes mortos em 2017. Além dessas, a represa de Sobradinho, na Bahia, com capacidade para armazenar 34 bilhões de metros cúbicos de água e que, há cinco meses (dezembro de 2017), se encontrava com 2% da sua capacidade. Hoje, atua com 37%, porém com esse percentual já em declínio e, segundo previsão de alguns hidrogeólogos, entrará em volume morto até o final de dezembro próximo, caso não chova o suficiente e os uso das águas do São Francisco não se realize dentro de padrões técnicos adequados. O abastecimento da região está sendo feito por frotas de caminhões-pipas, com águas de origem duvidosa, as únicas de que se dispõe no momento, já que o Nordeste inteiro está desidratado e com baixos volumes em suas represas. Essas águas, fornecidas para o consumo humano, certamente predispõem toda região a sérios problemas de saúde pública como a hepatite, esquistossomose, verminoses, dentre outras enfermidades veiculadas pela água.

Quando uma represa é construída, ela pereniza o rio por ela represado, com uma determinada vazão. Essa vazão, denominada “vazão de regularização”, garante 100% do uso das águas, desde que os volumes retirados não sejam superiores àqueles determinados e garantidos pela represa. O que vem ocorrendo nos últimos anos no Semiárido, por falta de uma gestão hídrica adequada, é a utilização das águas, em quantidades maiores do que as tecnicamente recomendadas e sem o mínimo controle, na irrigação e no próprio abastecimento das populações. Acrescente-se a esse cenário os volumes perdidos com vazamentos, evaporação e infiltrações e pode-se ter uma ideia da gravidade do problema. A represa de Boqueirão de Cabaceiras é exemplar nesse aspecto: após um longo tempo operando no vermelho (volume morto), apesar de ter recebido boas contribuições no período das águas de 2018, permaneceu numa situação de penúria hídrica, acumulando cerca de, apenas, 35% de seu volume total. Mesmo assim, as autoridades paraibanas do setor hídrico abriram suas comportas para socorrer Acauã, represa localizada à jusante, cujo volume se encontrava em torno de 2% de sua capacidade total. Apesar da boa intenção do poder público em recuperar a Acauã, o volume defluído de Boqueirão (cerca de 4,8 m³/s), superava, em muito, os 1,25 m³/s da vazão de regularização 100% garantida pela barragem. Embora, posteriormente, essa vazão inicial de defluência tenha sido reduzida, pelo Dnocs, para cerca de 50%, a represa já dá indícios de queda volumétrica, mesmo a região estando em plena quadra chuvosa.

O que fica muito claro, a partir da análise dos dados anteriormente fornecidos, é que o preceito hidrológico de boa gestão volumétrica das águas dos açudes tem que ser respeitado, sistematicamente, e com muita determinação, porque, agindo-se de forma contrária, as represas vêm a secar. Ou seja, é cobrir um santo, descobrindo outro!

Outra área preocupante é a bacia do Rio São Francisco que, apesar de ter recebido boa quantidade de água por conta das chuvas mais regulares de 2018, continua sem poder garantir o abastecimento hídrico da região.

Atualmente (maio de 2018), a represa de Três Marias vem liberando cerca de 158 m³/s em direção a Sobradinho. Essa baixa defluência, necessária para garantir uma capacidade volumétrica adequada ao bom desempenho de Três Marias, dentro de padrões seguros de geração, preservando o bom funcionamento da hidrelétrica que nela opera, vem provocando impactos no cotidiano das pessoas e no ambiente natural da bacia do São Francisco, principalmente no tocante à manutenção da vida de suas lagoas marginais.

A Companhia Hidrelétrica do São Francisco – Chesf, a Companhia Energética de Minas Gerais – Cemig e a Agência Nacional de Águas (ANA), instituições que gerenciam os volumes do São Francisco na região de Três Marias e de Sobradinho, vêm tomando providências para que esta última não passe a operar no vermelho. Além de terem instituído quarta-feira como o Dia do Rio (quando é proibindo o uso de suas águas pelo agronegócio), estão também empenhadas numa liberação volumétrica adequada de Três Marias para Sobradinho, e desta em direção à foz do São Francisco, a fim de preservar a segurança das vazões de ambas as represas, sem comprometer o atendimento das suas inúmeras demandas hídricas, tais como a irrigação, geração de energia, navegação e abastecimento das populações. Apesar disso, em maio, começo do período da seca, em Bom Jesus da Lapa, o Velho Chico já começava a dar indicativos de que, este ano, as coisas não serão fáceis para os ribeirinhos. Os técnicos da Cemig esperam que a quadra chuvosa de 2018 ainda lhes proporcione grau de liberdade suficiente para os aumentos necessários de vazões da represa de Três Marias em direção a Sobradinho.

Outro grande problema, para a gestão dos volumes da represa de Sobradinho, é a expressiva retirada de água dos subsolos dos principais aquíferos existentes na bacia do Velho Chico. Esse fato somado ao longo período de secas ocorrido desde 2012, vem influindo no volume defluído da represa para o Submédio e o Baixo curso do rio, atualmente de apenas 550 m³/s, em média, quando a vazão mínima exigida pelo Ibama, a chamada vazão ecológica, é de 1300 m³/s, o que cria um déficit de cerca de 750 m³/s, naquela região. Dessa forma, a solução definitiva para esse momento crítico da região do São Francisco, passa a depender da ocorrência de chuvas, ou seja, das providências divinas, o que também se constitui o fiel da balança para a regularização do atendimento das demandas hídricas de todo o Semiárido.

Mais uma questão importante que precisa ser levada em consideração é a dos aquíferos do Rio São Francisco, dentre eles, o Urucuia e o Bambuí, que desempenham papel fundamental no regime hidrológico do Velho Chico (principalmente no volumétrico), porque apresentam geologia sedimentária, com solos porosos, o que facilita a infiltração da água da chuva, para a formação dos chamados lençóis freáticos. O Aquífero Urucuia, por exemplo, é responsável por cerca da metade da vazão de base que aflui na represa de Sobradinho. É nos lençóis freáticos desse aquífero onde ocorrem, de forma lenta (cerca de alguns centímetros a cada dia), os fluxos de base em direção à calha do rio.

As águas desses aquíferos estão sendo super exploradas na irrigação, em uma região de intenso cultivo agrícola (agronegócio), para produção das culturas de soja e milho, por intermédio de equipamentos chamados pivôs centrais, que consomem uma quantidade expressiva de água (cerca de 2600 m³/h, cada unidade). Na região Oeste da Bahia, por exemplo, estima-se a existência de mais de uma centena deles, o que constitui uma extrema desproporcionalidade entre as águas que estão sendo exploradas e os lentos volumes de base que são direcionados, diariamente, para a calha do rio, alimentando a sua vazão. Também na região da Mapitoba (região de extensa atividade agrícola, fronteira dos Estados do Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia), localizada sobre o aquífero Urucuia, onde as autoridades estimam uma produção recorde de cerca de seis milhões de toneladas, as águas subterrâneas estão sendo descontroladamente exploradas, através de pivôs centrais e de usos indevidos (furtos e desvios para outros fins). Esses fatos têm interferido no atual quadro de crise hídrica existente na bacia do Velho Chico, contribuindo para acabar com a vida do rio.

Diante do exposto, fica evidente que a gestão correta das águas do Semiárido, também diz respeito ao planejamento dos usos volumétricos dos principais aquíferos da região, respeitando-se o uso correto de suas vazões de base.

No Nordeste brasileiro existem áreas nas quais as secas ocorrem com menor intensidade, mas existe uma área denominada de “Miolão da Seca” (descrita por Otamar de Carvalho, em seus trabalhos), na qual as situações de estiagem são mais frequentes: 80% das secas do Semiárido ocorrem nessa área de sua parte setentrional. É para lá que foi planejada a chegada das águas do Rio São Francisco, através do projeto da Transposição, visando à solução dos problemas de abastecimento das populações. Hoje, boa parte dos municípios do Miolão da Seca está em estado de emergência, com o abastecimento, via de regra, sendo realizado com frotas de caminhões-pipas. Essa situação traz um enorme constrangimento para as populações, já que, além de serem abastecidas de forma precária, com água de péssima qualidade, ainda enfrentam reflexos negativos no trânsito dos municípios. Afinal, estima-se uma frota com cerca de cinco mil caminhões pipas transitando e tentando resolver as necessidades hídricas do povo.

A saída seria iniciar um programa de gestão adequada dos recursos hídricos interiores (de represas e de subsolo). Mas, como estamos em uma situação na qual não existem, ainda, volumes suficientes nas represas para se iniciar esse gerenciamento, não há outra solução, a não ser a de se esperar a quadra chuvosa iniciada no mês de novembro de 2017 e atualmente em vigor. Caso as chuvas não continuem a ocorrer de forma satisfatória, o problema tende a se agravar, já que as águas do embasamento cristalino são poucas e de má qualidade (salobras) e aquelas represadas ainda insuficientes para um atendimento planejado das demandas da população. Essa situação demonstra a necessidade do poder público começar a traçar estratégias de aproveitamento das águas já acumuladas nas represas, cisternas, ainda presente em poços, etc., contando, para tanto, com planos de gestão eficientes e condizentes com a gravidade da situação reinante. Já que a água é um bem natural finito, a sua busca tem que ser empreendida com muito planejamento e seu uso realizado com muita parcimônia.

Nesse aspecto, é imperioso dar a devida importância aos trabalhos desempenhados pela ASA Brasil, uma instituição não governamental, que congrega 600 outras ONGs, com ações voltadas para a convivência com o Semiárido. A ASA trabalha com cerca de 40 tecnologias do setor hídrico, a exemplo de cisternas rurais de placas, cisternas produtivas tipo calçadão, barragens subterrâneas, mandalas, entre outras. O êxito para o bom funcionamento dessas tecnologias está na racionalidade do uso das águas.

A ASA Brasil trabalha com cisternas rurais de placas, com capacidade de 16 mil litros e, também, com aquelas voltadas para fins produtivos, com capacidade para 52 mil litros. As cisternas de placas captam água dos telhados das casas, para fornecer um produto de boa qualidade (consumo e cozimento), para uma família de cinco pessoas, durante os oito meses sem chuvas na região. As cisternas produtivas (cisternas calçadão), que são implantadas no campo, captam água através de uma área previamente construída (calçada) para esse fim, e permitem, ao sitiante, a irrigação de uma pequena horta e algumas fruteiras, possibilitando acréscimos em sua renda familiar. Em secas pretéritas, com as dificuldades de acesso a água para uso doméstico e a gêneros alimentícios, era muito comum, no Nordeste semiárido, haver saques em supermercados e feiras livres, por parte da população. Com o uso dessas tecnologias, o cenário de dificuldades mudou radicalmente, uma vez que os saques passaram a não mais ocorrer. Isso motivou o poder público a continuar apoiando essas ações voltadas para o campo, pela certeza do desenvolvimento que continuarão trazendo para a região, não só fixando o homem a terra, mas, e principalmente, melhorando sua qualidade de vida.

Em relação ao abastecimento das populações do Semiárido, foram duas as iniciativas para tentar resolver, de vez, essa questão: a viabilização de uma infraestrutura hídrica, no setentrional nordestino, capaz de dar acesso às águas interiores da região, e a implantação do projeto da Transposição das águas do Rio São Francisco.

No tocante à viabilização da infraestrutura hídrica, a SBPC promoveu uma reunião no Recife, em agosto de 2004, na qual reuniu cerca de 40 dos principais expoentes da hidrologia nacional, com o propósito de discutir transposição de águas entre grandes bacias hidrográficas. Nessa reunião, as questões ambientais da bacia do Rio São Francisco foram analisadas em suas minúcias, tendo sido detectadas, pelos técnicos participantes, importantes limitações, na oferta de volumes do rio, que poderiam dificultar o atendimento às demandas hídricas dos nordestinos. Identificados os fatores limitantes, a SBPC fez uma proposta – que consta no relatório dessa reunião – de construção de uma infraestrutura hídrica, partindo-se de jusante para montante (do setentrional em direção à bacia do São Francisco), buscando-se as águas interiores da região (de poços, represas, rios, entre outras). Com essa infraestrutura em funcionamento, se avaliaria, posteriormente, a necessidade, ou não, de novos aportes hídricos para a população. Portanto, em 2004, as águas interiores do Semiárido eram consideradas como as principais fontes de abastecimento, enquanto as águas do Rio São Francisco como de abastecimento complementar.

Em dezembro de 2006, a Agência Nacional de Águas (ANA), baseando-se na proposta técnica da reunião da SBPC, sugeriu a criação do Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Água, um programa bem abrangente, em termos de abastecimento, pois possibilitava a oferta de água para um universo de 34 milhões de pessoas, em municípios de até 5.000 habitantes, a um custo de cerca da metade daquele previsto no projeto da Transposição do Rio São Francisco. Apesar da proposta do Atlas estar pronta, não prosperou, porque o poder público deu prioridade ao projeto da transposição.

O projeto da Transposição do Rio São Francisco foi concebido para abastecer 12 milhões de pessoas no Setentrional nordestino, por intermédio de dois eixos, o Leste e o Norte, os quais têm a possibilidade de retirar, do rio, cerca de 127 m³/s (28 m³/s no eixo Leste e 99 m³/s do eixo Norte). O eixo Leste foi inaugurado em junho de 2017, conduzindo as águas do Velho Chico para o abastecimento da represa de Boqueirão de Cabaceiras, minimizando, de certa forma, a incômoda situação de três longos anos de racionamento enfrentados pelo município de Campina Grande. As águas começaram a ser bombeadas da represa de Itaparica, em volumes de cerca de 9 m³/s, não só para o abastecimento de pessoas, mas, também, para a irrigação de pequenas áreas (0,5 ha), em propriedades localizadas próximas aos canais. Porém, devido à urgência em abastecer as populações residentes ao longo do percurso, o poder público foi obrigado a escavar rasgos nos paredões das represas de Poções, no município de Monteiro e Camalau, no município homônimo, a fim de acelerar a chegada das águas do Velho Chico. A continuidade dessa sangria, para usos diversos, principalmente na irrigação, juntamente com as perdas provenientes da evaporação e de infiltrações, acarretou uma redução na vazão em Monteiro, de cerca de 3 m³/s, registrando-se em Boqueirão, apenas, 3,5 m³/s.

Com o início da quadra chuvosa na bacia do rio Paraíba, Boqueirão passou a receber, apenas, os volumes oriundos das chuvas caídas, uma vez que o poder público interrompeu o processo de bombeamento do eixo Leste, alegando a necessidade de reparo dos danos causados pelos rasgos efetuados, às pressas, nos paredões das represas anteriormente citadas. Atualmente, Boqueirão de Cabaceiras permanece fornecendo água à população da região sem contar com aquelas do Rio São Francisco, apenas com os volumes acumulados na represa, pelas chuvas caídas do período chuvoso em vigor.

O eixo Norte do projeto da Transposição ainda não foi concluído, havendo a promessa das autoridades responsáveis, de entregá-lo até o final de 2018.

Diante do cenário de crise hídrica relatado, com evidências claras de limitações volumétricas do Velho Chico para suprir as demandas que lhe são imputadas, circulou, no meio político, uma proposta para transposição das águas do Rio Tocantins em direção à bacia hidrográfica do São Francisco. O propósito seria elevar o nível do espelho d´água desse último, permitindo, assim, a volta da navegabilidade, principalmente para as embarcações de grande calado. Essa proposta se constitui não só num atestado de equívoco, por parte das autoridades, em relação ao projeto da transposição do Rio São Francisco, como também um indicativo de que os erros de avaliação permanecem. De acordo com o que a mídia nordestina vem divulgando, o Tocantins tem apresentado problemas nos seus níveis volumétricos que colocam em risco a economia de todo o Estado. Não é sensato, portanto, tentar solucionar a limitação hídrica de um rio, transportando, para o interior de sua bacia, as águas de outro caudal que já se encontra limitado, do ponto de vista hidrológico. Além disso, aspectos ambientais da bacia do Tocantins também devem ser evidenciados: a geologia cristalina, em alguns pontos da região, impede a existência de fluxos de base, condicionando o rio, naqueles locais, a volumes exclusivos de escoamentos superficiais provenientes das águas de chuvas. Essa característica geológica dá ao Tocantins uma amplitude volumétrica entre 760 m³/s, no posto de observação de Serra da Mesa, e de 450 m³/s no posto de Cana Brava, portanto, volumes insuficientes para solucionar os problemas dos baixos níveis do Rio São Francisco, tendo em vista já existir, neste último, um déficit volumétrico de cerca de 750 m³/s, à jusante de Sobradinho. Em se concretizando esse projeto de transposição do Tocantins, a excessiva utilização de suas águas, pode acarretar, num futuro próximo, a necessidade de aportes volumétricos de outro rio para salvá-lo, que poderá necessitar, num futuro mais distante, de outro caudal que o socorra e assim, sucessivamente, transformando a questão “transposição” numa bola de neve sem fim!

Finalmente, é imperioso tratar tudo isso de forma sistêmica, pensando globalmente e agindo localmente, garantindo à sociedade uma solução definitiva para o abastecimento seguro das populações.Iniciando-se agora um programa consistente de revitalização de bacias e de gestão adequada dos recursos hídricos interiores, poderemos entregar, às gerações futuras, as águas do nosso País em condições adequadas de uso, fazendo jus à importância que elas têm para a vida das pessoas e para o desenvolvimento da região.

João Suassuna – Engenheiro Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco

* Conferência proferida pelo pesquisador João Suassuna, no II Simpósio do Bioma Caatinga (SIBIC), ocorrido na Universidade do Vale do São Francisco (Univasf), Juazeiro – BA, no período de 30/07 a 03/08.

** Artigo enviado pelo Autor e originalmente publicado em http://www.suassuna.net.br/2019/05/gestao-estrategica-dos-recursos.html
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 31/05/2019




Autor: EcoDebate
Fonte: EcoDebate
Sítio Online da Publicação: EcoDebate
Data: 31/05/2019
Publicação Original: https://www.ecodebate.com.br/2019/05/31/gestao-estrategica-dos-recursos-hidricos-no-contexto-do-bioma-caatinga-artigo-de-joao-suassuna/

Taxa de infecções hospitalares atinge 14% das internações no Brasil





De acordo com o Ministério da Saúde, estima-se que a taxa de infecções hospitalares atinja 14% das internações no país. E lavar as mãos corretamente é fundamental para evitar essas infecções, principalmente nos casos dos profissionais de saúde.

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), 70% dos profissionais de saúde e 50% das equipes cirúrgicas pelo mundo não praticam rotineiramente a higienização das mãos.
Mudança de hábitos para diminuir infecções

A adoção de novos hábitos e cuidados por pacientes e profissionais de saúde em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) de 119 hospitais públicos do país está conseguindo reduzir o número de infecções hospitalares. Ao todo, foram evitadas 1.715 infecções da corrente sanguínea, urinárias e pneumonia. Isso quer dizer que 558 pacientes puderam ser salvos neste período.

Entre as mais comuns, a incidência de infecção urinária associada a cateter caiu 47,7%, já a infecção na corrente sanguínea associada a cateter venoso central caiu 28,3% e a pneumonia associada à ventilação mecânica registrou queda de 30%.


No início do projeto colaborativo “Melhorando a Segurança do Paciente em Larga Escala no Brasil”, do Ministério da Saúde, os hospitais participantes apresentavam incidências destas três infecções. No entanto, após a intervenção, boa parte das unidades conseguiu manter em zero a incidência das infecções sanguínea e urinária.
Fatores importantes na prevenção de infecções

A maior parte das infecções é provocada por microrganismos presentes no próprio paciente, nas mãos dos profissionais de saúde, em um acompanhante ou presentes no próprio leito. Elas ainda podem ser transmitidas por equipamentos invasivos, como respirador para ventilação mecânica, ou mesmo por contato com outros pacientes.

Um estudo da Organização Mundial de Saúde (ONU) demonstrou que a maior ocorrência de casos de infecções acontece em unidades de terapia intensiva, enfermarias cirúrgicas e alas de ortopedia.

Outros fatores importantes na prevenção de futuros quadros de infecção é a higienização dos ambientes onde estão os pacientes, além de isolar aqueles que já estão contaminados e a aplicação de protocolos de prevenção.
Evitar as infecções em ambiente hospitalar se torna cada dia mais importante no atual contexto das bactérias multirresistentes a antibióticos, além de reduzir o tempo de internação dos pacientes e reduzir os custos com a assistência médica.


As ações de controle de infecção hospitalar em escala nacional são coordenadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Os hospitais, tanto da rede pública quanto privada, precisam notificar a agência sobre os casos, além de desenvolver ações de prevenção e controle.

O projeto Colaborativo “Melhorando a Segurança do Paciente em Larga Escala no Brasil” é desenvolvido pelo Ministério da Saúde, em parceria com os cinco hospitais de excelência que participam do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (PROADI-SUS): Sírio-Libanês (SP), Israelita Albert Einstein (SP), Alemão Oswaldo Cruz (SP), Hospital do Coração (SP) e Moinhos de Vento (RS).

O projeto possui três anos de intervenção, podendo ser prolongado. Nesse período, a estimativa é salvar 8.500 vidas, reduzindo pela metade as infecções nas UTI’s atualmente no Brasil.


Autor: Úrsula Neves
Fonte: PebMed
Sítio Online da Publicação: PebMed
Data: 21/05/2019
Publicação Original: https://pebmed.com.br/mudanca-nos-habitos-de-higiene-reduz-14-das-infeccoes-em-hospitais/

Mudança climática pode alterar relações simbióticas entre microrganismos e árvores




Mapeamento feito por consórcio internacional revela como estão distribuídas no globo essas associações entre espécies fundamentais para os ecossistemas florestais. Estudo foi destaque na capa da Nature

No solo das florestas, algumas espécies de fungos e de bactérias se associam a raízes de árvores para crescerem juntas, de modo a obterem benefícios mútuos. Os microrganismos auxiliam as plantas a absorver água e nutrientes do solo, a sequestrar carbono e a resistir aos efeitos das mudanças climáticas. Em troca, recebem carboidratos essenciais para seu desenvolvimento, produzidos pelas plantas durante a fotossíntese.

Uma colaboração de mais de 200 cientistas de diversos países, incluindo 14 de diferentes regiões do Brasil, mapeou a distribuição global dessas associações entre organismos de espécies diferentes (simbioses), fundamentais para o funcionamento dos ecossistemas florestais. Com base nesse mapeamento foi possível identificar fatores que determinam onde diferentes tipos de simbioses podem surgir e estimar os impactos das mudanças climáticas nessas relações simbióticas e, consequentemente, no crescimento das árvores nas florestas.

Se as emissões de dióxido de carbono (CO2) continuarem inalteradas até 2070, pode ocorrer uma redução de 10% nas espécies de árvores que se associam a um tipo de fungo encontrado principalmente em regiões mais frias do planeta, estimaram os pesquisadores.

O trabalho, destacado na capa da revista Nature, contou com a participação de Carlos Joly e de Simone Aparecida Vieira, ambos professores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membros da coordenação do Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade (BIOTA-FAPESP). Também participou a brasileira Luciana Ferreira Alves, que hoje atua na Universidade da Califórnia em Los Angeles, Estados Unidos.

“Já se sabia que a associação entre microrganismos e raízes é fundamental para alguns grupos de árvores conseguirem se estabelecer em regiões em que o solo é muito pobre e os nutrientes são liberados lentamente pela decomposição de matéria orgânica. O mapeamento permite entender como essas relações estão distribuídas no planeta e os fatores que as definem”, disse Vieira à Agência FAPESP.

Os pesquisadores se concentraram em mapear três dos tipos mais comuns de simbioses: fungos micorrízicos arbusculares, fungos ectomicorrízicos e bactérias fixadoras de nitrogênios. Cada uma dessas interações engloba milhares de espécies de fungos ou bactérias, que formam parcerias únicas com diferentes espécies de árvores.

Há 30 anos, o botânico inglês David Read, professor da University of Sheffield, da Inglaterra, e pioneiro nas pesquisas sobre simbioses, desenhou mapas de lugares no mundo onde achava que poderiam ser encontrados diferentes fungos simbióticos, com base nos nutrientes que exploram para permitir o crescimento das plantas.

Os fungos ectomicorrízicos, por exemplo, obtêm nitrogênio para as árvores diretamente de matéria orgânica, como folhas em decomposição. Por isso, Read propôs que esses microrganismos seriam mais bem-sucedidos em florestas com climas sazonais, mais frios e secos, onde a decomposição em razão da temperatura e umidade é mais lenta e a serrapilheira – camada de restos de plantas – é abundante.

Os fungos micorrízicos arbusculares, por sua vez, seriam dominantes nas florestas tropicais, nas quais o crescimento das árvores é limitado pelo fósforo do solo e nos quais os climas sazonais quentes e úmidos aumentam a decomposição.

Mais recentemente, um estudo feito por outro grupo de pesquisadores estimou que as bactérias fixadoras de nitrogênio seriam mais abundantes em biomas áridos, com solos alcalinos e altas temperaturas máximas.

Essas hipóteses puderam ser testadas, agora, com a coleta de dados de um grande número de árvores, em diversas partes do planeta, reunidos pela Global Forest Biodiversity Initiative (GFBI) – um consórcio internacional de cientistas florestais.

O consórcio é integrado, além de Joly e Vieira, por Pedro Henrique Santin Brancalion e Ricardo Gomes César, ambos da Universidade de São Paulo (USP), Gabriel Dalla Colletta, da Unicamp, Daniel Piotto, da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), André Luis de Gasper, da Universidade Regional de Blumenau (FURB), Jorcely Barroso e Marcos Silveira, da Universidade Federal do Acre (UFAC), Iêda Amaral e Maria Teresa Piedade, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Beatriz Schwantes Marimon, da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), e Alexandre Fadigas de Souza, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Nos últimos anos, os pesquisadores ligados ao GFBI fizeram inventários de mais de 1,1 milhão de parcelas permanentes de florestas, que abrangem 28 mil espécies de árvores, de mais de 70 países, situadas em todos os continentes, à exceção da Antártida.

Os inventários reúnem informações, como a composição do solo, a topografia, a temperatura e a evolução do carbono fixado nessas parcelas permanentes de florestas ao longo de grandes períodos de tempo.

“As parcelas inventariadas por pesquisadores ligados ao BIOTA-FAPESP estão situadas na Mata Atlântica e incluem regiões do litoral norte do Estado de São Paulo, como Caraguatatuba, Picinguaba, Cunha e Santa Virgínia, e Carlos Botelho e Ilha do Cardoso, no litoral sul”, disse Joly. “Também inventariamos um conjunto expressivo de parcelas na Amazônia por meio de projetos em colaboração com outros grupos."

A partir desse conjunto de inventários, os pesquisadores conseguiram estimar a localização de 31 milhões de árvores espalhadas pelo mundo, assim como os fungos ou as bactérias simbióticos associadas a elas. Por meio de um programa de computador (algoritmo), foi possível determinar como diferentes variáveis relacionadas ao clima, química do solo, vegetação e topografia influenciam a prevalência de cada simbiose.

Os resultados das análises sugeriram que variáveis climáticas associadas à decomposição da matéria orgânica, como a temperatura e a umidade, são os principais fatores que influenciam as simbioses de fungos micorrízicos arbusculares e ectomicorrízicos. Já as simbioses de bactérias fixadoras de nitrogênio são provavelmente limitadas pela temperatura e acidez do solo.

“Qualquer mudança que possa ocorrer no clima no hemisfério norte pode deslocar os fungos ectomicorrízicos para outras regiões e ocorrer a perda ou uma diminuição muito grande da densidade dessas relações simbióticas”, disse Vieira.

“Isso pode afetar a ciclagem de nutrientes e, principalmente, a fixação de carbono, que depende dessa associação simbiótica para que a vegetação das florestas possa absorver nutrientes pouco disponíveis ou que não estão na forma de que necessitam”, afirmou.

Efeito das mudanças climáticas

A fim de estimar a vulnerabilidade dos padrões globais de simbiose às mudanças climáticas, os pesquisadores usaram o mapeamento para prever como poderiam mudar até 2070, se as emissões de dióxido de carbono continuarem inalteradas.

As projeções indicaram uma redução de 10% dos fungos ectomicorrízicos e, consequentemente, da abundância de árvores associadas a esses fungos – que correspondem a 60% das árvores.

Os pesquisadores alertam que essa perda poderia levar a mais CO2 na atmosfera, porque esses fungos tendem a aumentar a quantidade de carbono armazenado no solo.

“O CO2 limita a fotossíntese e, em princípio, seu aumento na atmosfera pode ter efeito fertilizante. As espécies de plantas que crescem mais rápido talvez consigam aproveitar melhor esse aumento da disponibilidade de CO2 na atmosfera do que aquelas que crescem mais lentamente. Dessa forma, poderíamos ter uma seleção de espécies. Mas ainda não há resposta para essa pergunta”, disse Joly.

Outra pergunta que os pesquisadores têm buscado responder é qual seria o impacto da interação do aumento da disponibilidade de CO2 na atmosfera com a elevação da temperatura do planeta no desenvolvimento das plantas. Com o aumento da temperatura as plantas terão que gastar mais recursos com a respiração, que aumentará mais do que a taxa de fotossíntese. O saldo desse balanço no crescimento da vegetação ainda não está claro, afirmam os pesquisadores.

“Essas questões, que dizem respeito às florestas tropicais, ainda estão em aberto. O monitoramento contínuo de parcelas permanentes de florestas vai nos ajudar a respondê-las”, disse Joly.

O artigo Climatic controls of decomposition drive the global biogeography of forest-tree symbioses (DOI: 10.1038/s41586-019-1128-0), de B. S. Steidinger, T. W. Crowther, J. Liang, M. E. Van Nuland, G. D. A. Werner, P. B. Reich, G. Nabuurs, S. de-Miguel, M. Zhou, N. Picard, B. Herault, X. Zhao, C. Zhang, D. Routh, GFBI consortium e K. G. Peay, pode ser lido na revista Nature em www.nature.com/articles/s41586-019-1128-0.




Autor: Elton Alisson
Fonte: Agência FAPESP
Sítio Online da Publicação: FAPESP
Data: 24/05/2019
Publicação Original: http://agencia.fapesp.br/mudanca-climatica-pode-alterar-relacoes-simbioticas-entre-microrganismos-e-arvores/30589/#.XOfgYVYD_qw.whatsapp

Atenção auditiva é afetada por alteração do ritmo cardíaco causada por estresse

Em situações de estresse é comum a perda momentânea da capacidade de perceber sons do ambiente. Pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em colaboração com colegas da Oxford Brookes University, da Inglaterra, fizeram uma descoberta que pode ajudar a compreender esse fenômeno.

Segundo o estudo, publicado na revista Scientific Reports, a atividade cerebral relacionada à atenção auditiva acompanha o ritmo do coração. Dessa forma, a alteração na frequência cardíaca induzida pelo estresse compromete a percepção auditiva.

A pesquisa, que abre novas perspectivas para o tratamento de distúrbios de atenção e de comunicação, teve apoio da FAPESP e contou com a colaboração de cientistas da Universidade de São Paulo (USP) e da Faculdade de Medicina do ABC.

“Constatamos que pequenos níveis de estresse já são capazes de alterar o ritmo do coração e, dessa forma, comprometer a atenção auditiva”, disse Vitor Engrácia Valenti, professor da Unesp de Marília e coordenador da pesquisa, à Agência FAPESP.

De acordo com Valenti, estudos publicados nos últimos anos já indicavam que estímulos auditivos são capazes de induzir flutuações da frequência cardíaca e que o condutor dessas alterações é o nervo vago.

Esse nervo, que percorre grande parte do corpo, indo do cérebro ao abdômen, desempenha funções motoras e sensoriais, diminui a frequência cardíaca ao ser ativado. Além disso, o nervo participa da atividade do sistema nervoso parassimpático – responsável, entre outras coisas, por desacelerar os batimentos cardíacos.

Em estudos prévios com animais, observou-se que a atividade do nervo vago aumenta durante a estimulação auditiva relaxante e ativa a expressão de uma proteína chamada c-Fos no córtex auditivo. Essa constatação indicou uma associação entre o processamento do som no córtex cerebral e o sistema nervoso parassimpático, explicou Valenti.

“Não estava claro, porém, a influência dos estímulos sonoros no controle da frequência cardíaca pelo nervo vago e se há interação entre o controle do ritmo do coração e a atividade cortical cerebral relacionada com a atenção auditiva em humanos”, afirmou.

A fim de elucidar essas questões, os pesquisadores fizeram agora um experimento com 49 mulheres em que a regulação do ritmo cardíaco foi submetida a uma sobrecarga induzida por um teste de estresse leve.

O teste consistia em falar o maior número possível de palavras em português que começassem com a letra A, sem repeti-las ou usá-las no aumentativo ou diminutivo, em até 60 segundos. O tempo foi limitado para que não houvesse interferência do sistema nervoso simpático – que estimula ações de resposta a situações de estresse, como a aceleração dos batimentos cardíacos, por meio dos efeitos da adrenalina – e da liberação de cortisol na atividade cerebral das voluntárias.

Foram avaliadas, antes e depois do teste, a variabilidade da frequência cardíaca e a atividade cerebral das participantes por meio de um exame conhecido como potencial evocado auditivo de longa latência (P300).

A variabilidade da frequência cardíaca permite mensurar o controle autonômico do ritmo cardíaco em níveis variados de estresse. Já o potencial evocado auditivo de longa latência possibilita analisar o nível de atenção auditiva a um estímulo sonoro por meio do monitoramento da atividade do córtex pré-frontal e do córtex auditivo por eletrodos colocados na região do osso frontal e na região das articulações dos ossos parietal e frontal.

Os resultados dos testes indicaram que o pequeno nível de estresse a que as voluntárias foram submetidas foi suficiente para alterar o ritmo do coração, e que isso aconteceu paralelamente à atenuação da atenção auditiva medida pelo potencial evocado auditivo de longa latência.



Estudo feito na Unesp indica que atividade cerebral relacionada à percepção do som acompanha a frequência do coração; descoberta abre novas perspectivas para o tratamento de distúrbios de atenção e de comunicação (foto: Viviane B. de Góes)

As análises estatísticas de correlação e regressão linear mostraram que o controle autonômico do coração por meio da atividade do nervo vago e o processamento cerebral dos estímulos auditivos trabalham em consonância.

“Isso indica que, em situações de estresse, a informação auditiva é processada de um jeito pior do que seria se a pessoa estivesse em um estado mais tranquilo”, disse Valenti.

“Dessa forma, em uma situação de estresse, ao se respirar mais lentamente, por exemplo, é possível ativar o sistema nervoso parassimpático e, com isso, diminuir o ritmo do coração e melhorar a percepção da informação auditiva”, explicou.

Na avaliação do pesquisador, a descoberta abre novas perspectivas para o tratamento de casos relacionados com distúrbios de atenção e de comunicação com base na ativação do nervo vago por meio de estímulos elétricos na região auricular para controlar o ritmo do coração.

Estudos que utilizam esse método, feitos por pesquisadores do Departamento de Fonoaudiologia da Unesp de Marília com crianças autistas, têm apresentado resultados promissores.

“Os dados dos estudos mostraram que as crianças com autismo tiveram uma melhora significativa dos sintomas por meio desse método de tratamento”, afirmou Valenti.

O artigo Interaction between cortical auditory processing and vagal regulation of heart rate in language tasks: a randomized, prospective, observational, analytical and cross-sectional study (DOI: 10.1038/s41598-019-41014-6), de Viviane B. de Góes, Ana Cláudia F. Frizzo, Fernando R. Oliveira, David M. Garner, Rodrigo D. Raimundo e Vitor E. Valenti, pode ser lido na revista Scientific Reports em www.nature.com/articles/s41598-019-41014-6.




Autor: Elton Alisson
Fonte: Agência FAPESP
Sítio Online da Publicação: FAPESP
Data: 30/05/2019
Publicação Original: http://agencia.fapesp.br/atencao-auditiva-e-afetada-por-alteracao-do-ritmo-cardiaco-causada-por-estresse/30636/#.XO-zDttKkA8.whatsapp

quarta-feira, 29 de maio de 2019

A rã que pode ser usada como teste de gravidez


Direito de imagem
GETTY IMAGES
Image caption
Esta rã era usada para testes de gravidez entre as décadas de 1930 e 1970

A rã-de-unhas-africana (Xenopus laevis) teve uma vida tranquila nas águas da África Subsaariana por milhões de anos. Até que, nos anos 1930, um cientista britânico decidiu injetar urina nela.

Lancelot Hogben era um zoólogo que costumava injetar várias substâncias em animais, principalmente hormônios, para ver como eles reagiam.

Após um desses experimentos, ele descobriu acidentalmente que a injeção de hormônios da gravidez nesses animais os estimulava a botar ovos.


Direito de imagem
NOVARTIS AG
Image caption

Os exames ficaram tão eficientes que por duas décadas dezenas de milhares de rãs foram inoculadas com urina humana

Maureen Symons se lembra de receber os resultados de um exame de gravidez feito com uma rã Xenopus nos anos 1960.

"Tenho uma imagem na minha cabeça de, pelo meno menos duas vezes, um médico de avental branco chegar e dizer, satisfeito, 'Você está grávida - as rãs puseram ovos'", diz ela à BBC.


Direito de imagem
NOVARTIS AG
Image caption

O exame era simples: após a injeção de urina na pele de uma Xenopus fêmea, deveria-se esperar entre 5 e 12 horas para ver se ela botaria ovos

Os exames Xenopus não estavam disponíveis para o público geral. Eles eram usados em casos médicos urgentes - para distinguir, por exemplo, o desenvolvimento de um feto do crescimento de um tumor.

Maureen teve dois abortos, e só as rãs lhe deram um diagnóstico eficaz.

"Hoje percebo que fui bastante privilegiada por fazer todos esses exames", ela diz.


Image caption
No auge de sua popularidade, o exame Xenopus era realizado em laboratórios especiais
Ponto de vista

O historiador da medicina Jesse Olszynko-Gryn, da Universidade de Strathclyde, na Escócia, diz que embora a ideia soe estranha para nossos ouvidos modernos, o princípio do teste é idêntico ao de um exame caseiro. A diferença é a forma como conversamos sobre gravidez.

Ele diz que, nos anos 1930, o termo gravidez era raramente mencionado nos jornais, por ser considerado "muito biológico e um pouco rude".

Para o historiador, o teste da rã deu visibilidade à gravidez.


Direito de imagem
BBC IDEAS
Image caption

Exames de gravidez modernos só se popularizaram nos anos 1990

"Fazer exames de gravidez é parte da criação dessa nova cultura em que vivemos hoje que realmente tornou a gravidez, o parto e a reprodução tão visíveis publicamente."

As rãs acabaram ficando em paz quando os primeiros exames caseiros começaram a ser desenvolvidos, nos anos 1970.




Autor: BBC News Brasil
Fonte: BBC News Brasil
Sítio Online da Publicação: BBC News Brasil
Data: 29/05/2019
Publicação Original: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48428055

A estratégia de alfabetização que revolucionou aprendizado em escolas do Piauí


Direito de imagem
JOÃO BITTAR/CENTRAL DE MÍDIA DO MEC
Image caption

Alunos da Casa Meio Norte em foto de arquivo; a despeito de condições adversas, escola pública conseguiu que 100% de seus alunos do 5º ano tivessem aprendizado adequado de matemática e português

A Escola Municipal Casa Meio Norte fica em uma rua remota de uma dos bairros de menor renda e maiores índices de violência de Teresina (PI), cercada de mato, entulho e de casas simples, feitas de tijolo sem acabamento ou pintura.

A despeito do entorno empobrecido, os resultados da Casa Meio Norte têm crescido regularmente nas avaliações oficiais de educação. Em 2017, 100% dos alunos avaliados da 5ª série tinham conhecimentos adequados em matemática e português - um salto, respectivamente, de 51 pontos percentuais e 27 pontos percentuais em relação a 2013, segundo dados da Prova Brasil, do Ministério da Educação.

Os índices são consideravelmente superiores às médias do Piauí e também do Brasil. No país inteiro, pouco mais da metade dos alunos dessa faixa etária têm conhecimentos adequados em português e só 44% os têm em matemática.

A grande transformação por trás dos índices crescentes na Casa Meio Norte começou em 2000, com um projeto de alfabetização e incentivo à leitura implementado por duas diretoras escolares que se viram diante de um desafio: como ensinar crianças em uma conjuntura totalmente adversa?

"A escola fica em uma área de alta vulnerabilidade. Os alunos às vezes chegavam portando armas e facas, havia brigas de gangues, a distorção idade-série (alunos fora da série adequada para sua idade) era altíssima. E a gente pensava: o que vamos fazer com essas crianças?", conta à BBC News Brasil Ruthneia Vieira Lima, diretora pedagógica da escola.
"Ao mesmo tempo, eu via que nossos alunos tinham grandes habilidades motoras, desde pequenos. Não tinha nada de errado com eles. Voltamos às teorias pedagógicas e passamos a estudar as crianças uma a uma para entendê-las. Tentamos olhar o modo como a criança aprendia a ler, mais do que como o professor a ensinava."


Direito de imagem
JOÃO BITTAR/CENTRAL DE MÍDIA DO MEC
Image caption

Estratégia combina ensinar às crianças como as palavras são articuladas e as mudanças de sentido com a troca de letras e sílabas; acima, aluno da escola em foto de arquivo

Lima, ao lado da também diretora Osana Santos Morais, desenvolveu, sem nenhum novo investimento, uma estratégia própria, que batizaram de Projeto Borboleta, a partir da ideia de transformação do inseto: "Ele passa de rastejante para voador. É como vemos os processos de aprendizado. A leitura te permite voar daqui para qualquer lugar do mundo."
De borboletas a águias

Olhando-os individualmente, as diretoras dividiram os alunos em quatro grupos, a partir da capacidade de leitura - em vez de pela idade - de cada um: desde "borboletas" (os que não leem nada) passando para "andorinhas" (os que são capazes de juntar uma letra a outra, mas sem interpretá-las) daí para os "gansos" (os que conseguem ler um pouco mais, mas sem fluência) indo até as "águias" (os leitores fluentes).

A estratégia combina ensinar às crianças como as palavras são articuladas e o que Lima chama de "coreografia" da escrita - o fato de que a mudança de uma letra pode mudar o sentido da palavra. Mas vai além: a oferta de livros e os momentos de leitura são abundantes, "para a criança aprender com o sentido das palavras e escutar seus usos, para se sentir uma leitora. Também usamos muitas poesias, por causa de sua melodia".

Assim, as crianças passaram a ler uma média de 30 livros por mês, ou um por dia, mas em um contexto "prazeroso, em que o texto tem significado. É entender que o ler pelo prazer de ler faz diferença na vida", conta Osana Morais.

E os professores são encorajados a sair da cadeira e "a ver como está a leitura do lado das crianças, a escutá-las, sentindo o cheirinho delas. A aproximação afetiva é crucial para isso dar certo", diz Lima.


Direito de imagem
ASCOM PREFEITURA DE PIO IX
Image caption
Ruthneia Vieira Lima expandiu estratégia para outras escolas do Piauí

A estratégia também tenta tornar as crianças mais ativas no aprendizado e na autoavaliação. "Elas são incentivadas a avaliar a própria leitura: 'preciso melhorar na leitura da pontuação', por exemplo. A partir disso, fazemos proposições de como ela pode avançar até 'virar águia'. Não temos uma cultura de provas e fazemos apenas as avaliações obrigatórias do MEC", prossegue.

Por fim, Lima diz que foi necessário tirar os professores da zona de conforto.

"Como existe a expectativa de que a criança levará três anos (de ensino fundamental) para aprender a ler e escrever, ninguém se preocupava muito em ser aquela que ia ensiná-la de fato, e o aluno só ia passando de ano", explica a diretora pedagógica.

Com isso, diz Morais, os professores da escola foram transformados em "aprendizes e observadores de alunos em processo de evolução, para compreender a criança como um ser capaz de aprender tudo".
'Poucos leitores'

Ante os resultados na Casa Meio Norte, as diretoras passaram a "franquear" a estratégia para outras escolas e cidades da região, assim como fazem os sistemas de ensino privados. São mais de dez municípios do Piauí replicando o Projeto Borboleta, diz Lima.

Um dos principais exemplos vem de Oeiras, pequena cidade de 37 mil habitantes encravada no meio do Piauí.

A secretária de Educação, Tiana Tapety, queria transformar a cidade em um polo de leitura, mas notou que, "sem (um projeto de) alfabetização, tínhamos poucos leitores", disse ela durante seminário sobre alfabetização realizado pelo Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV no Rio, em 23 de maio.

O Projeto Borboleta começou nas escolas da rede municipal oeirense em 2017 e, aliado a demais esforços para incentivar a leitura e a cultura entre os jovens da cidade, fez com que as escolas locais praticamente zerassem as taxas de abandono escolar e reprovação, segundo Tapety.


Direito de imagem
JOÃO BITTAR/CENTRAL DE MÍDIA DO MEC
Image caption

Alunas da Escola Meio Norte em foto de arquivo; Piauí tem um dos mais altos índices de analfabetismo no país

"Temos quase 100% de nossas crianças do 1º ao 5º ano lendo", disse a secretária. "Esse resultado, acima de tudo, é uma justiça social. (...) Nossas escolas passaram a ter médias semelhantes, (a notas no Ideb, medição oficial do MEC) entre 6 e 7."

Para Francisca Pereira Maciel, diretora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da UFMG, o Brasil já tem uma variedade de métodos e estratégias de alfabetização para atender as necessidades das escolas, materiais didáticos adequados e até bibliotecas bem equipadas em boa parte das redes do país.

Mas ainda tem gargalos que dificultam que exemplos como os de Oeiras e da Casa Meio Norte se tornem mais comuns: além de fragilidades na formação universitária de professores plenamente hábeis a alfabetizar, o principal obstáculo é a criação de um compromisso com a alfabetização e de um projeto coletivo.

"E esse não pode ser um compromisso do professor sozinho, mas sim um objetivo compartilhado (em cada rede e em plano nacional)", diz à BBC News Brasil. "O que temos hoje é a descontinuidade, a falta de apoio ao professor e a dificuldade dele em compartilhar tanto suas coisas legais como suas dúvidas."

Embora não tenha estudado o Projeto Borboleta a fundo, Maciel diz que um mérito do projeto é ter conseguido "trabalhar a leitura e a escrita em contexto com a cultura no entorno da escola e criar um coletivo que permitiu a formação de todos os professores (em torno de um objetivo comum)."
Analfabetismo no Brasil

Apesar de avanços no combate ao analfabetismo, o Brasil ainda tem enormes desafios nessas áreas.

Ao 3º ano do ensino fundamental (ou seja, o final ciclo final da alfabetização), apenas 66,2% dos alunos brasileiros tinham aprendizado adequado em escrita e 78,3% em leitura, segundo dados de 2016 (os mais recentes) do Ideb.

Para além das crianças, segundo dados do IBGE, o país passou de 11,4% de jovens ou adultos analfabetos em 2004 para 7% em 2017, mas isso ainda equivale a 11,5 milhões de pessoas que não sabem ler nem escrever.

No Piauí essa taxa era 16,6% em 2017, a segunda mais alta do país, atrás apenas do Maranhão (16,7%), de acordo com o IBGE.

Já o número de analfabetos funcionais - capazes de escrever o próprio nome, mas não de interpretar um texto ou realizar operações matemáticas cotidianas, por exemplo - é muito maior: cerca de 30% da população brasileira.


Direito de imagem
ANDRÉ NERY/MEC
Image caption

Projeto do MEC despertou debates em torno de métodos de alfabetização

A alfabetização foi um dos assuntos no centro de polêmicas neste ano no MEC, que em abril lançou a Política Nacional para essa etapa, com a intenção de "fundamentar em evidências científicas suas políticas públicas para a alfabetização", e gerou um debate diante da sinalização de que o método chamado de "fônico" (que associa letras aos fonemas) seria privilegiado em detrimento de outros.

Isso levou a críticas de diversos especialistas, por discordarem ou do método fônico ou da ideia de que uma única metodologia seja estimulada pelo ministério.

Francisca Maciel, do Ceale-UFMG, diz que favorecer um ou outro método "fere a autonomia da escola e não dá garantia nenhuma de aprendizado".

"O que é necessário é um compromisso para que as crianças sejam alfabetizadas com a capacidade de fazer uso social (da leitura e dar escrita), que faça sentido para além das quatro paredes da escola. Caso contrário, vira algo mecanizado. Onde ficam o prazer e o sentido do aprendizado?"

Para Ruthneia Lima, da Casa Meio Norte, as discussões em torno dos métodos acaba tirando o foco da necessidade de cada professor aprender com as dificuldades reais de seus alunos, individualmente.

"É o aluno que empurra o professor a aprender (a ensinar)", argumenta.

Outra estratégia, disse Tiana Tapety, de Oeiras, é a escola puxar para si plenamente a tarefa de alfabetizar as crianças, sem esperar contrapartidas de famílias muitas vezes desestruturadas e pouco escolarizadas.

Ela citou, por exemplo, uma grande quantidade de crianças de Oeiras que são criadas apenas pelas avós.

"Como vamos mandar uma tarefa de casa para um menino cuja avó não sabe ler?", questionou ela no evento da FGV. "Então, temos que valorizar o tempo dela na escola. Se a família não consegue, nós vamos fazer mais pela criança. (...) Se ela não aprendeu, a gente retoma. Nenhum aluno a menos."

Ruthneia Lima conta que, nos 19 anos em que ajuda a comandar a Casa Meio Norte, "perdemos 30 crianças para a maginalidade. Mas também temos meninos que foram para a universidade e se formaram em Enfermagem, Bioquímica, Psicologia".

"Ainda estou pesquisando o motivo, mas vejo que (nossa estratégia) se sobressai principalmente nas escolas de zona rural. Eu acho que é porque alavanca a autoestima dos alunos. Eles ficam empoderados para ler. Meu sonho é que cada criança do Piauí mostre que é uma pessoa capaz de aprender."




Autor: Paula Adamo Idoeta
Fonte: BBC News Brasil em São Paulo
Sítio Online da Publicação: BBC News Brasil
Data: 29/05/2019
Publicação Original: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48425133

terça-feira, 28 de maio de 2019

O distúrbio que pode levar pacientes a fazer coisas absurdas durante o sono


Image caption

Kelly Knipes agora dorme com uma máscara de oxigênio para respirar melhor à noite

Ela se queimou com o isqueiro que o marido usa para fumar, mas nem percebeu.

Gastou quase US$ 4 mil em compras pela internet e tomou uma overdose de medicamentos.

Grávida de seis meses, ela colocava em risco sua vida e a do bebê com esses comportamentos, que não eram conscientes.

Mãe de três filhos, Kelly Knipes, que vive no Reino Unido, sofre de um distúrbio do sono que faz parte do grupo das parassonias, transtornos caracterizados por comportamentos anormais durante o sono.

Dependendo da fase do sono em que ocorrem, podem se manifestar como sonambulismo, pesadelos ou despertar confuso.


Image caption

Kelly Knipes sofre de uma parassonia, transtorno comportamental durante o sono

No caso de Knipes, ela acordava sonâmbula no meio da noite e realizava todo tipo de atividade.

Na manhã seguinte, não se lembrava de nada.

Os médicos descobriram que ela parava de respirar várias vezes durante a noite, forçando seu cérebro a despertar parcialmente, o que provocava o sonambulismo.

"Eles acreditam que meu cérebro estava me acordando para respirar, porque eu tinha parado de respirar. Basicamente, nesse período em que meu cérebro estava tentando me acordar, eu estava fazendo minhas atividades."

Ou seja, era a forma que o corpo dela tinha de dizer que algo não estava bem.
Compras bizarras

As compras pela internet incluíam centenas de dólares em doces e latas de tinta.

"Eram coisas completamente aleatórias", explica Knipes à BBC.

Os estudos sobre sonambulismo mostram que as partes do cérebro que controlam a visão, o movimento e a emoção parecem estar despertas.

No entanto, áreas do cérebro envolvidas na memória, tomada de decisão e pensamento racional aparentam permanecer em sono profundo.


Direito de imagem
SCIENCE PHOTO LIBRARY
Image caption

Um cérebro que está em sono profundo se parece com a imagem à direita, mas no caso dos sonâmbulos, se assemelha à figura da esquerda, quando está acordado

São breves episódios em que a pessoa pode realizar atividades simples ou complexas, como sair da cama, ir ao banheiro, caminhar ou sair de casa, enquanto permanece inconsciente.

"Na maioria dos casos, o paciente é assintomático e não tem consciência de nada", diz Elena Urrestarazu Bolumburu, especialista do serviço de neurofisiologia da clínica da Universidade de Navarra, na Espanha.

"Muitas vezes o sono da família é mais afetado que o do próprio paciente", acrescenta.

Esses episódios deixaram Knipes exausta. Mas agora ela usa uma máscara de oxigênio à noite, para garantir que vai respirar enquanto dorme.

"Estava cansada o tempo todo, me sentia fisicamente exausta. E agora não, me sinto como uma pessoa completamente diferente."


Direito de imagem
GETTY IMAGES
Image caption

O sono tem um grande impacto no bem estar físico e mental, porque é restaurador

As parassonias são mais comuns na infância e na adolescência - é muito raro que continuem na idade adulta.
Devemos acordar um sonâmbulo?

Os especialistas do Instituto do Sono, com sedes em Madri, Panamá e Santiago do Chile, recomendam não despertar os sonâmbulos, apenas acompanhá-los gentilmente até a cama para que não se machuquem.

Esses episódios geralmente terminam espontaneamente, quando o paciente retorna ao leito e, portanto, ao sono normal.

Se eles acordam repentinamente, vão ficar confusos.
Existe um tratamento para o sonambulismo?

Para os especialistas da Universidade de Navarra, o tratamento se baseia principalmente em medidas preventivas.

É aconselhável instalar dispositivos de segurança no quarto, dormir em uma cama no nível do chão, de preferência no andar térreo, fechar as janelas e cobrir objetos de vidro.

Além disso, alguns remédios psiquiátricos, como diazepam ou alprazolam, ansiolíticos com efeito calmante, demonstraram ser eficazes quando tomados sob prescrição médica.




Autor: BBC News Brasil
Fonte: BBC News Brasil
Sítio Online da Publicação: BBC News Brasil
Data: 28/05/2019
Publicação Original: https://www.bbc.com/portuguese/geral-48424663

Com pânico de HIV e doenças, jovens evitam sexo e ficam obcecados por exames: 'Faço todo mês'


Direito de imagem
GETTY IMAGES
Image caption

Muitos jovens acreditam ter contraído infecções sexualmente trasmissíveis mesmo sem ter vivenciado situação de risco

A cada início de mês, Juliano*, de 32 anos, avalia em qual unidade de saúde de São Paulo poderá fazer exames para checar se foi infectado pelo vírus HIV. "Eu dou a volta pela cidade à procura de um posto de saúde em que não me conheçam", diz. Os resultados negativos dos testes trazem alívio ao rapaz por alguns dias, mas ele logo volta a se preocupar.

Fernanda*, de 19 anos, vai com frequência ao ginecologista. Diariamente, ela pensa sobre a possibilidade de ter contraído alguma Infecção Sexualmente Transmissível (IST), mesmo sem vivenciar situações em que pode ter se exposto ao risco. "Somente me acalmo quando faço exames e vejo que deu negativo para todas as ISTs", diz. Maria*, de 25, ficou preocupada após a camisinha se romper – parou de fazer sexo e, desde então, se submete a testes frequentes.

Juliano, Fernanda e Maria fazem parte de um grupo de pessoas que tem crescido nos últimos anos, de acordo com especialistas consultados pela BBC News Brasil: aquelas que, por motivos diferentes, desenvolveram pânico de pegar alguma doença por meio do sexo e, por isso, se submetem a vários e desnecessários exames mesmo sem ter passado por nenhuma situação que ofereça risco.

A infectologista Helena Duani, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), costuma atender, por semana, de dois a três casos de pessoas que acreditam ter sido infectadas por alguma IST, mesmo sem ter vivenciado uma situação de risco.

"Elas marcam a consulta e chegam com as inúmeras dúvidas, em geral sem nenhuma queixa ou sintoma", conta.


Segundo o infectologista Alexandre Naime, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu (SP), os casos de pessoas com frequentes pensamentos sobre ISTs, mesmo com exames e médicos confirmando que não há infecção, aumentaram. Para ele, o principal motivo para isso são as informações difundidas na internet.

"As pessoas estão muito mais informadas. Hoje, há algumas situações com as quais elas não se preocupavam antes, por conta das divulgações sobre diversos assuntos nas redes sociais. Por isso, o médico deve informar o paciente e deixá-lo bem tranquilo quando uma possível contaminação por alguma IST for totalmente excluída", diz.


Direito de imagem
GETTY IMAGES
Image caption

Para que a pessoa tenha uma vida sexual saudável, é fundamental o uso de preservativo em caso de diferentes parceiros
O preservativo rompeu

A vida sexual da advogada Maria*, de 25 anos, foi interrompida há seis meses, desde que ela começou a pensar com frequência na possibilidade de ter alguma IST. "Não consigo me relacionar com ninguém desde então", diz.

Tudo mudou quando o preservativo de um parceiro se rompeu durante o sexo.

Ela diz ter questionado o rapaz, com quem saía havia alguns meses, se ele havia feito exames de ISTs recentemente.

"Ele ficou ofendido e disse que não tinha nenhuma doença. Eu orientei que ele fizesse os exames, mas ele se negou. Isso me deixou muito assustada", conta.

No dia seguinte, a advogada procurou um infectologista, passou a receber acompanhamento e deu início a exames frequentes.

"Comecei a sentir diversos sintomas. Passei a ficar preocupada, ansiosa e não consegui esquecer aquele episódio", diz.

Por conta própria, fez exames semanais nos quatro primeiros meses.

"Sempre tive parceiros fixos, usei preservativo, mas nunca deixei de fazer exames de ISTs, ao menos uma vez por ano. É uma preocupação que sempre fez parte da minha rotina", comenta.

"Mas agora se tornou algo preocupante. Coloquei na minha cabeça que me infectei com HIV. Procurei grupos de pessoas que vivem com o vírus e, em muitos momentos, realmente acredito que tenho HIV. Penso que todos os exames que fiz podem estar errados, mesmo tendo sido feitos em laboratório diferentes", diz

Nos três primeiros meses após o rompimento do preservativo, a advogada recebeu apoio da infectologista que a atendeu. "Ela pedia os exames de todas as ISTs, uma vez por mês", conta. Ainda assim, Maria frequentemente fazia testes por conta própria. "Fiz diversos testes rápidos de HIV (cujos resultados saem em uma hora), em clínicas particulares, uma vez por semana."

Logo que passaram os 90 dias após a exposição de risco - período no qual, segundo especialistas, o HIV ou outras ISTs podem se manifestar -, a infectologista disse a Maria que ela não havia contraído nenhuma infecção e deu alta médica para a paciente. O medo, porém, permanece.

"Ainda faço exames particulares com frequência. Todos deram negativo, mas o temor continua."


Direito de imagem
ARQUIVO PESSOAL
Image caption

Para o infectologista Alexandre Naime, o principal motivo da onda de pânico são as informações difundidas na internet

A advogada comenta que os pensamentos frequentes sobre possíveis ISTs a têm prejudicado muito.

"Passei a tomar remédios para ansiedade. Além disso, gasto dinheiro fazendo exames", detalha.

Ela e o rapaz com quem saiu há seis meses não se viram mais. "Na última vez em que conversamos, ele me disse que sou neurótica", diz.

"Hoje, acredito que nunca mais vou conseguir manter relações sem preservativos. Com o susto que passei, comecei a pesquisar muita coisa e vi que muitas mulheres se infectam com o vírus por meio de maridos e namorados. Isso me fez ficar mais atenta", declara.
'É uma paranoia'

Juliano é designer, profissão que não está entre aquelas nas quais há risco de exposição ocupacional ao HIV e outras ISTs – como, por exemplo, profissionais da saúde. Ele afirma que não se expõe a situações nas quais possa contrair alguma infecção sexualmente transmissível.

"Comecei a descobrir a minha sexualidade na adolescência. Me relacionava com outros rapazes. Tive a minha primeira relação sexual aos 16. Sempre usava preservativo e não tinha paranoias sobre infecções sexuais", relata.

Segundo ele, os temores frequentes sobre ISTs tiveram início aos 24 anos. "Eu tive uma pneumonia muito forte. Fui ao hospital, a médica me perguntou se eu era gay. Quando confirmei, ela respondeu: 'você está com HIV'. Ela disse isso sem sequer ter feito exames. Eu desmaiei na hora. A minha vida mudou a partir daquele dia", conta.

Ao receber alta, Juliano fez inúmeros exames que deram negativo para o vírus. "Desenvolvi insônia crônica, até hoje durmo à base de remédios. Havia fases em que eu não saía de casa. Fiquei anos sem me encontrar com ninguém", relata.

Hoje, mesmo sem qualquer situação de risco, ele faz exames mensais para atestar que não foi infectado. "Tenho informações sobre ISTs, sei como são transmitidas, mas me sinto, muitas vezes, como se tivesse contraído algo. É uma paranoia. Preciso fazer exames para ficar aliviado."


Direito de imagem
GETTY IMAGES
Image caption

Especialistas recomedam exames de rotina a cada seis meses e consultas médicas periódicas para quem tem diferentes parceiros

No Brasil, estima-se que 866 mil pessoas vivem com o HIV, conforme o Ministério da Saúde. Desde os primeiros casos descobertos, nos anos 80, o vírus costuma ser associado a homens gays.

"Por conta do que ela me disse, passei a pensar que estou fadado a ter HIV por ser gay. É como se isso fosse um carma por ser homossexual", diz Juliano.

Para especialistas, relacionar o HIV unicamente a homens que fazem sexo com outros homens é erro e preconceito – o número de mulheres infectadas têm crescido anualmente, por exemplo.

Hoje é possível que uma pessoa com o HIV tenha qualidade de vida por meio de tratamentos com antirretrovirais que fazem com que o vírus se torne indetectável - quando a presença dele no sangue é extremamente baixa e a chance de transmissão se torna quase nula. Os medicamentos são disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Juliano afirma que sabe disso, mas que tem a sensação de que morrerá em poucos meses caso contraia o vírus. "Já liguei para a minha mãe e para a minha irmã para dizer que eu iria morrer, porque eu estava com HIV, mesmo com exames negativos. É algo fora do normal", explica.

Durante seis anos, o designer optou por não ter relações sexuais por causa do medo. Ainda assim, ele continuou fazendo testes rápidos - cujos resultados saem em uma hora - todos os meses. "Era uma situação absurda. Qualquer coisa que acontecia comigo, como uma pinta no braço ou dor de garganta, logo pensava que era HIV. Fazia o exame e dava negativo. Mas depois o medo voltava."Direito de imagemGETTY IMAGESImage captionNo Brasil, estima-se que 866 mil pessoas vivem com HIV

Há dois anos, ele decidiu retomar a vida sexual. "A minha primeira relação, depois desses anos, foi boa. Usamos preservativo. Mas logo que terminamos, os pensamentos sobre ISTs continuaram me preocupando e fui fazer exames dias depois", diz.

No ano passado, ele deu início à terapia PrEP, sigla para profilaxia pré-exposição. Disponível no SUS desde o fim de 2017, a medicação tem o objetivo de impedir a multiplicação do HIV nas células de defesa do organismo, em caso de contaminação. A medida é uma tentativa de frear o crescimento de infecções pelo vírus - ela não previne outras ISTs.

Para conseguir a PrEP, destinada a grupos de vulnerabilidade, como profissionais do sexo e casais sorodiferentes - quando apenas um deles possui HIV -, o designer revela que teve de conversar insistentemente com servidores de um posto de saúde.

"Disseram que eu não poderia tomar, porque não faço parte da população-chave, por não vivenciar situações de risco de infecção e não ter, na época, uma vida sexual ativa. Mas eu insisti e disse que precisava do medicamento para que pudesse ter uma vida sexual saudável, sem tantos temores. Por fim, eles permitiram que eu tomasse o remédio."

Mas mesmo com a PrEP e hoje tendo parceiro fixo, Juliano faz exames de HIV todos os meses, além dos trimestrais que fazem parte do tratamento. Ele procura diferentes unidades de saúde para conseguir os testes.

"Ainda me bate paranoia e eu preciso fazer os exames. Saio em busca de postos de saúde onde não tenho cadastro, em São Paulo. Todos os meses é a mesma procura. Sempre recorro a locais em que não saibam que eu uso a PrEP, porque senão me orientariam a fazer somente os exames trimestrais", revela.

Direito de imagem
GETTY IMAGES
Image caption

A terapia PrEP, disponível no SUS desde 2017, é um método de prevenção à infecção por HIV
Trauma após infecção com o parceiro

A universitária Fernanda conta que o ginecologista que a acompanha avalia que ela deveria fazer exames de ISTs a cada seis meses, pois ela não passa por situações de risco de infecção. No entanto, ela insiste para fazer os testes a cada três ou quatro meses.

"Ele solicita esses exames sempre que eu peço, pois sabe que somente me acalmo ao ver os resultados negativos", relata.

A busca por frequentes exames de ISTs tornou-se parte da vida da jovem há pouco mais de um ano, logo após ela descobrir que havia contraído herpes genital do primeiro namorado.

"Essa infecção me trouxe muitas feridas na vulva. Foi uma experiência muito traumática. Fiz o tratamento indicado e a situação melhorou. Mas como não há cura para herpes, faço acompanhamento frequente", declara.

Logo após a descoberta da infecção, a estudante começou a pensar com frequência que também poderia ter contraído outras ISTs.

"Penso dia e noite sobre isso. Faço exames e dá negativo para todas as infecções. Mas o medo nunca cessou. Desde que recebi aquele diagnóstico de herpes, não há um dia em que não acorde pensando que estou com alguma doença."

Os especialistas explicam que, para que uma pessoa tenha uma vida sexual saudável, é fundamental que seja feita a prevenção adequada, por meio do uso de preservativo - em caso de diferentes parceiros -, exames de rotina a cada seis meses e consultas médicas periódicas.


Direito de imagem
GETTY IMAGES
Image caption

'É uma paranoia. A pessoa fica inconsequente', diz Juliano que faz exames mensais para ter certeza que não foi infectado

Os temores referentes a ISTs se tornam problemas quando o indivíduo deixa de acreditar nos exames e passa a fazê-los com frequência, mesmo sem vivenciar qualquer risco, e não confia mais em médicos que descartam a possibilidade de uma infecção. A situação costuma trazer dificuldades para a vida sexual da pessoa.

É o caso de Fernanda. "Inúmeras vezes me pego pensando, no meio da relação sexual, se estou tendo contato com alguma doença, mesmo usando preservativo", diz.

Periodicamente, a jovem de Campinas (SP) faz exames para verificar se contraiu ISTs como HIV, sífilis, hepatites virais B e C ou Papilomavírus Humano (HPV). "Tenho medo absurdo de qualquer tipo de IST."

Ela conta que chegou a se desesperar e perder o controle ao não conseguir marcar uma consulta médica.

"A carteirinha do meu plano de saúde foi negada. Eu desabei, comecei a chorar na mesa da secretária e gritei: 'Preciso fazer meus exames', no meio de um consultório lotado", relata. Horas depois, foi atendida pelo ginecologista, que solicitou os exames.
Ajuda médica

Os casos de pessoas com pensamentos constantes sobre ISTs costumam ser encaminhados a psiquiatras. O diagnóstico pode variar conforme a situação vivida pela pessoa e a análise do médico. Os tratamentos costumam ser feitos por meio de psicoterapia e medicamentos.

Fernanda foi diagnosticada com hipocondria severa - transtorno no qual o paciente tem medo constante de estar doente ou desenvolver uma doença grave - e ansiedade.

"Faço uso de antidepressivos. Isso tem me ajudado muito e fez com que as minhas crises de ansiedade diminuíssem. Mas os pensamentos sobre ISTs ainda existem", diz.

Direito de imagem
GETTY IMAGES
Image caption

Os casos de pacientes que vivem com medo de infecções sexualmente transmissíveis costumam ser encaminhados a psiquiatras

Maria e Juliano também foram diagnosticados com ansiedade, fazem acompanhamento com psiquiatras e tomam medicamentos para lidar com o transtorno.

"Os pensamentos continuam. Mas observei que eles não são mais constantes como antes, desde que comecei a psicoterapia", diz Juliano, que também foi diagnosticado com depressão.

Segundo a psiquiatra Carmita Abdo, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), os pensamentos intrusivos e sem fundamentos sobre ISTs podem ser, em muitos casos, características de um Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) com foco em relacionamentos sexuais.

"As obsessões são pensamentos que não saem da cabeça da pessoa. Mesmo que ela queira, não consegue se esquivar. Quem tem esses pensamentos relacionados a ISTs não está fora da realidade e não é uma pessoa psicótica. Pelo contrário, sabe que aquelas ideias não procedem, porque os exames confirmaram que não houve infecção. Porém, os pensamentos persistem, apesar das evidências contrárias", detalha.
'Espero que esses pensamentos passem logo'

Maria, Fernanda e Juliano possuem em comum o desejo de levar uma vida sexual saudável e sem preocupações desnecessárias sobre as ISTs.

"Eu acredito que, com o tempo, continuando o tratamento psicoterápico, possa melhorar esses pensamentos. Não é normal alguém ter esse medo todos os dias. Tenho certeza de que a minha vida seria mais leve se esses pensamentos não existissem. Eles me trazem um estresse absurdo diariamente", diz Fernanda.

Para Maria, o medo se tornou seu maior problema.

"É importante se prevenir, mas não ficar com esses pensamentos sempre. Sinceramente, não sei quando vou entender que não fui infectada durante a minha última relação sexual. E será que não fui mesmo? Espero que esses pensamentos passem logo", comenta a advogada.

"É surreal a forma como esse medo pode prejudicar a vida de alguém. E por mais que eu queira e busque os tratamentos adequados, não existe uma forma de garantir que eu nunca mais terei esses pensamentos", diz Juliano.

*Nomes alterados a pedido dos entrevistados, para preservar suas identidades.



Autor: Vinícius Lemos
Fonte: Cuiabá para a BBC News Brasil
Sítio Online da Publicação: BBC News Brasil
Data: 28/05/2019
Publicação Original: https://www.bbc.com/portuguese/geral-48334953

Concentrações de antibióticos encontrados em alguns dos rios do mundo ultrapassam os níveis ‘seguros’ em até 300 vezes



Antibióticos encontrados em alguns dos rios do mundo ultrapassam níveis ‘seguros’, segundo estudo global

University of York *

Os pesquisadores procuraram 14 antibióticos comumente usados ??em rios em 72 países em seis continentes e encontraram antibióticos em 65% dos locais monitorados.

O metronidazol, que é usado para tratar infecções bacterianas, incluindo infecções de pele e boca, excedeu os níveis de segurança pela maior margem, com concentrações em um local em Bangladesh 300 vezes maior do que o nível “seguro”.

No rio Tâmisa e em um de seus afluentes em Londres, os pesquisadores detectaram uma concentração máxima total de antibióticos de 233 nanogramas por litro (ng / l), enquanto em Bangladesh a concentração era 170 vezes maior.

Trimetoprim

O antibiótico mais prevalente foi o trimetoprim, que foi detectado em 307 dos 711 locais testados e é usado principalmente para tratar infecções do trato urinário.

A equipe de pesquisa comparou os dados de monitoramento com os níveis “seguros” estabelecidos recentemente pela AMR Industry Alliance, que, dependendo do antibiótico, variam de 20 a 32.000 ng / l.

A ciproflaxacina, que é usada para tratar uma série de infecções bacterianas, foi o composto que mais frequentemente excedeu os níveis de segurança, ultrapassando o limiar de segurança em 51 locais.

Problema global

A equipe disse que os limites “seguros” foram excedidos com mais frequência na Ásia e na África, mas os locais na Europa, América do Norte e América do Sul também apresentaram níveis de preocupação mostrando que a contaminação por antibióticos era um “problema global”.

Os locais onde os antibióticos excederam em maior grau os níveis “seguros” foram em Bangladesh, Quênia, Gana, Paquistão e Nigéria, enquanto um site na Áustria foi classificado como o mais alto dos locais europeus monitorados.

O estudo revelou que os locais de alto risco eram tipicamente adjacentes a sistemas de tratamento de águas residuais, lixões de lixo ou esgoto e em algumas áreas de turbulência política, incluindo a fronteira israelense e palestina.

Monitoramento

O projeto, liderado pela Universidade de York, foi um grande desafio logístico – com 92 kits de amostragem levados para parceiros em todo o mundo que foram solicitados a coletar amostras de locais ao longo de seu sistema fluvial local.

As amostras foram então congeladas e enviadas de volta para a Universidade de York para testes. Alguns dos rios mais emblemáticos do mundo foram amostrados, incluindo o Chao Phraya, o Danúbio, o Mekong, o Sena, o Tamisa, o Tibre e o Tigre.

John Wilkinson, do Departamento de Meio Ambiente e Geografia , que coordenou o trabalho de monitoramento, disse que nenhum outro estudo foi feito nessa escala. Ele disse: “Até agora, a maior parte do trabalho de monitoramento ambiental para antibióticos foi feito na Europa, na América do Norte e na China. Muitas vezes com apenas um punhado de antibióticos. Nós sabemos muito pouco sobre a escala do problema globalmente.

“Nosso estudo ajuda a preencher essa lacuna de conhecimento chave com dados sendo gerados para países que nunca haviam sido monitorados antes.”

Resistência antimicrobiana

O professor Alistair Boxall, líder temático do Instituto de Sustentabilidade Ambiental de York , disse: “Os resultados são bastante surpreendentes e preocupantes, demonstrando a contaminação generalizada dos sistemas fluviais em todo o mundo com compostos antibióticos.

“Muitos cientistas e formuladores de políticas reconhecem agora o papel do ambiente natural no problema da resistência antimicrobiana. Nossos dados mostram que a contaminação por antibióticos dos rios pode ser um importante contribuinte ”.

“Resolver o problema será um desafio gigantesco e necessitará de investimento em infraestruturas para tratamento de resíduos e águas residuais, regulamentação mais rigorosa e limpeza de locais já contaminados.”


* Tradução e edição de Henrique Cortez, EcoDebate.

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 28/05/2019




Autor: Henrique Cortez
Fonte: EcoDebate
Sítio Online da Publicação: EcoDebate
Data: 28/05/2019
Publicação Original: https://www.ecodebate.com.br/2019/05/28/concentracoes-de-antibioticos-encontrados-em-alguns-dos-rios-do-mundo-ultrapassam-os-niveis-seguros-em-ate-300-vezes/