A médica teve o cuidado de ligar para o colega que receberia o paciente e passar o caso:
“O meu paciente perdeu 23 kg nos últimos 6 meses e todos os exames estão normais. Agora ele está fraco. Há 2 meses apareceram algumas lesões de pele. As lesões apareceram após a prescrição de cetoconazol pelo urologista. Até biópsia nós fizemos. Foi compatível com farmacodermia”
O clínico pergunta sobre a investigação já feita e a médica refere, que as funções renal, hepática e tireoidiana são normais, com PCR negativa, sem alterações no hemograma ou glicemia, e que a sorologia para HIV é negativa.
Dois dias depois, o clínico recebe o paciente em seu consultório. Um homem negro, alto, magro mas sem “aspecto de doente”, em uso de máscara cirúrgica o que impediu que o médico sequer ouvisse o provável “bom dia” em resposta ao cumprimento inicial. O paciente estava acompanhado da esposa, uma senhora falante e sorridente (sorria com os olhos) que começou a contar a história.
A anamnese começa com o discurso livre, da esposa, com o médico ouvindo com atenção. Ela refere que o marido vem perdendo muito peso apesar de ter fome preservada.
Perda de peso em um sujeito com fome, prontamente faz o médico lembrar de diabetes ou hipertireoidismo, porém os exames pertinentes estavam normais. Será que estão normais mesmo?
A curiosidade, no entanto, não faz com que o médico interrompa o relato para abrir a sacola de exames, já sobre a mesa. Ela continua dizendo que ele agora “está fraco, que não consegue mais trabalhar na fábrica de estofados”. Relata que o marido está fazendo um “tratamento para imunidade com terapia bioenergética” – que está dando certo – e que a responsável por tal terapêutica identificou 37 patógenos no organismo dele.
O clínico se esforça para não expressar, na fisionomia, nenhum sinal de desaprovação e entende que o caminho percorrido pelo paciente está sendo narrado com fidelidade. A moça então diz que, há dois meses, o rapaz apresentou muito prurido no pênis, procurando o urologista, que prescreveu cetoconazol. Dias após o uso, um rash cutâneo difuso em tronco e membros surgiu, e que, por conta disso, a pele foi biopsiada. Ela diz então que agora ele precisa fazer uma endoscopia.
O clínico, agora com muitas informações em mãos, percebe que o estímulo iatrotrópico, aquele real motivo que faz o paciente ir ao médico, manifestado pela esposa é: fazer uma endoscopia para descobrir qual o problema do paciente.
A esposa reduz a intensidade da fala e abre espaço para o médico, que passa a conduzir a entrevista.
Em resumo, trata-se de um homem que vem perdendo peso, apesar de negar motivação para emagrecer, sem queixa de perda de apetite. Nega diarréia, dor abdominal, vômitos, icterícia, alterações urinárias, surgimento de nodulações ou massas. Ele pesava cerca de 100 kg e agora está com 73 kg. Está magro mas sem sinais aparentes de desnutrição.
O médico pede para examinar a pele e realiza o exame físico. Exceto pelas lesões (Imagem 1, Imagem 2), o exame é absolutamente normal. Não há mais lesões penianas e o relato, mais detalhado, sugere que tratava-se de uma balanite fúngica.
Os exames complementares mostravam, além do que foi dito acima, um ultrassom de abdome normal e apenas uma discretíssima linfopenia. Seria daí a conclusão da baixa imunidade para a terapia bioenergética?
Pelo princípio da Navalha de Occam, as lesões de pele e a perda de ponderal, deveriam estar presentes nas hipóteses etiológicas a serem investigadas. No entanto, as lesões de pele são muito compatíveis com uma farmacodermia em início de resolução (inclusive com a biópsia confirmando a impressão) e o agente responsável – o cetoconazol – também foi identificado.
O médico resolve seguir pelo princípio de Saints, médico sul-africano que ressalta a importância de considerar causas diversas para uma condição atípica. Assim, o médico separa mentalmente as lesões de pele da perda ponderal. A pele está resolvida: foi uma farmacodermia.
Curioso pelo fato do paciente se manter em silêncio, e pela precipitação da esposa em dar todas as respostas, o médico insiste em perguntar sobre o apetite. Ele diz que não perdeu a fome e que come muito bem.
Eis que a esposa fala: “Doutor, a gente come muito bem. Paramos de comer porcaria desde o início do ano. Eu também perdi 20 kg… mas eu era gorda, né… eu precisava.”
O médico, encabulado por dentro, percebe uma falha técnica grosseira em sua entrevista clínica. O diário alimentar do paciente com perda ponderal. Certo de que não deveria dar ênfase a este ponto no momento e de não pedir uma endoscopia poderia gerar uma frustração que impedisse o retorno, ele solicita a endoscopia. Porém, ele reforça a importância do pedido e pede, despretensiosamente, que a esposa anote tudo que ele vier a comer nos próximos dias.
No retorno, três dias depois, ela chega sorridente dizendo que a endoscopia está normal e mostra o diário alimentar.
Dia 1:
8h: 2 bananas nanicas médias
8h30: 2 ovos cozidos
9h: 2 mexericas
13h: 2 colheres de arroz integral, 2 ovos mexidos e 1 banana
16h: pipoca (meia xícara)
20h15: sopa de batata com cebola, repolho cozido com tomate
Dia 2:
8h: 1 maçã e 2 laranjas
9h45: pão de aveia, ervas finas desidratadas com cúrcuma, um pouquinho de banha de frigideira
12h30: 2 colheres de arroz com feijão, tomate, cebola, milho
15h30: Pipoca (meia xícara)
16h50: meia banana
21h: 2 ovos mexidos, com 2 colheres de arroz e 1 banana nanica
O médico abaixa a máscara e diz gentilmente: “Seu marido está com fome”. Ele orienta sobre a necessidade diária de proteínas, gorduras e carboidratos. O paciente recupera 3 kg em 10 dias.
Autor:
Bruno Farnetano
Clínica Médica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) • Mestrado pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) • Professor de Clínica Médica da UFV • Professor de Clínica Médica da UNIFAGOC • Instagram: @bruno.farnetano • Youtube: Semiologia Retrô
Veja outros casos clínicos:
Caso clínico: paciente, 52 anos, apresenta complicação após extubação
Caso clínico: paciente feminina com quadro de perda ponderal. Qual o diagnóstico?
Caso clínico: paciente de 15 anos com dor abdominal e febre contínua. Qual o diagnóstico?
Autor: Bruno Farnetano
Fonte: pebmed
Sítio Online da Publicação: pebmed
Data: 19/08/2021
Publicação Original: https://pebmed.com.br/o-que-sabemos-sobre-a-variante-delta-do-sars-cov-2-em-criancas/
Sítio Online da Publicação: pebmed
Data: 19/08/2021
Publicação Original: https://pebmed.com.br/o-que-sabemos-sobre-a-variante-delta-do-sars-cov-2-em-criancas/
Nenhum comentário:
Postar um comentário