quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

O que todo médico precisa saber sobre hepatite alcoólica

Estima-se que o álcool seja responsável por cerca de 50% dos óbitos por doença hepática crônica e que, aproximadamente, um terço dos pacientes com transtorno por uso de álcool desenvolve doença hepática crônica. A doença hepática alcoólica tem amplo espectro clínico e histológico, incluindo esteatose, esteatohepatite, cirrose hepática e carcinoma hepatocelular. A hepatite alcoólica é uma entidade clínica que ocorre em alcoolistas crônicos, cursando com icterícia e coagulopatia, além de aumentar a predisposição a infecções, ser desencadeante de acute-on-chronic liver failure (ACLF) e apresentar altas taxas de mortalidade, em torno de 20 a 50% em 03 meses.


A incidência de hepatite alcoólica vem crescendo e aumentando em populações mais jovens e do sexo feminino. A pandemia de covid-19 contribui para esse aumento. Recentemente, o New England Journal of Medicine publicou uma revisão sobre hepatite alcoólica, que fala sobre fatores de risco, patogênese, diagnóstico e tratamento.

Fatores de risco

Em sua maioria, os pacientes com hepatite associada ao álcool têm uma história de uso prolongado e em grandes quantidades de álcool.


São fatores de risco:

sexo feminino

etnia hispânica

fatores genéticos, como mutação no gene PNAPL3

Por outro lado, o consumo moderado de café e o polimorfismo no gene HSD17B13 são fatores protetores.


Patogênese

O álcool exerce dano hepático direto, através de suas toxinas e metabólitos, e indireto, através de exacerbação de resposta inflamatória. O fígado exerce papel fundamental na metabolização do álcool em acetaldeído, levando à ativação de resposta imune inata, depleção de glutationa, peroxidação lipídica, dano mitocondrial e exacerbação da resposta inflamatória através da liberação de DAMPs (padrões moleculares associados a danos).


Isso porque o consumo excessivo de álcool atua no eixo fígado-intestino, através da perda das “tight-junctions”, aumentando a permeabilidade intestinal e levando à disbiose. Com isso, há translocação bacteriana e liberação de PAMPS (padrões moleculares associados a patógenos), exacerbando a resposta inflamatória e causando dano hepático.


Há, ainda, uma tentativa inútil de regeneração hepática, através de expansão maciça das células progenitoras do fígado, que é denominada reação ductular. Dessa forma, a função hepática (que realiza, por exemplo, o transporte de bilirrubina, a síntese de fatores de coagulação e a metabolização da glicose) fica prejudicada.


A síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SIRS) e a disfunção imune são frequentes, favorecendo infecções bacterianas e o desenvolvimento de ACLF.


Diagnóstico e prognóstico da hepatite alcoólica

O artigo propõe um fluxograma diagnóstico com uma avaliação inicial, exclusão de potenciais diagnósticos diferenciais e avaliação de indicação de biópsia hepática transjugular. Na avaliação inicial, deve-se ter atenção a parâmetros clínicos e laboratoriais.


Os dados clínicos que favorecem o diagnóstico incluem: consumo crônico de álcool > 60g/dia em homens e 40 g/dia em mulheres até 60 dias antes do início da icterícia; início recente de icterícia, fadiga, ascite, febre, hepatomegalia dolorosa, confusão mental e flapping.


Nos exames laboratoriais, espera-se bilirrubina total maior que 3 mg/dl, AST/ALT maior que 2, AST menor que 400 U/L, Gama-GT maior que 100 U/L, albumina menor que 3g/L, INR maior que 1,5 e contagem de plaquetas menor que 150.000 cél/mm³. Alguns pacientes podem apresentar anemia hemolítica não imune.


Após suspeita clínica inicial é necessário excluir diagnósticos diferenciais. É indicado:


solicitar US abdome com Doppler para excluir obstrução mecânica (CHC, obstrução biliar benigna ou maligna, síndrome de Budd-Chiari);

revisão detalhada do uso de medicamentos, suplementos ou ervas com potencial hepatotóxico nos últimos três meses, com auxílio do site livertox.nih.gov para excluir DILI/HILI (lesão hepática induzida por drogas ou ervas);

solicitar sorologias para hepatites virais;

solicitar marcadores de hepatite autoimune se suspeição clínica ou primeiro episódio à FAN, IgG, anti músculo liso;

e avaliar presença de hipotensão, choque, hemorragia maciça ou uso recente de cocaína à Excluir hepatite isquêmica.

Na ausência de fatores confundidores, é feito o diagnóstico clínico provável de hepatite alcoólica. Nos casos de dúvida diagnóstica, deve-se considerar a possibilidade de biópsia hepática transjugular, incluindo os seguintes casos: apresentação clínico-laboratorial atípica; uso incerto de álcool; alta suspeição de hepatite autoimune; e uso de substâncias hepatotóxicas nos últimos três meses.


O diagnóstico de hepatite alcoólica comprovado por biópsia é feito se a biópsia hepática apresentar achados como: fibrose em ponte ou cirrose; bilirrubinostase hepatocelular, canalicular ou ductular; infiltração neutrófilos; e corpúsculos de Mallory-Denk. Na impossibilidade de realizar biópsia em casos de dúvida diagnóstica, o diagnóstico de hepatite alcoólica é clinicamente possível.


Feito o diagnóstico, deve-se avaliar a gravidade do quadro através do uso de escores prognósticos como índice de função discriminante de Maddrey, MELD score, ABIC e Glasgow, todos disponíveis em calculadoras on-line.


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Atualmente, o escore que vem mostrando melhor correlação com a gravidade é o escore MELD, que acima de 20 indica gravidade.


Tratamento

Para todos os pacientes, recomenda-se o tratamento de suporte e das complicações hepáticas, assim como o tratamento do alcoolismo.


O suporte nutricional é recomendado a todos os pacientes, que devem ingerir pelo menos 21 kcal/kg/dia. Quando o aporte oral não garante essa oferta, deve-se realizar nutrição enteral com alvo de 35-40 kcal/kg/dia. É recomendada suplementação de vitaminas do complexo B e outras vitaminas como D e K, caso os níveis séricos estejam baixos.


Os pacientes devem ser submetidos a rastreio infeccioso, com culturas, análise do líquido ascítico, radiografia de tórax e exame sumário de urina. Na suspeita de infecção, é necessário início precoce de antibióticos de amplo espectro. O manejo do alcoolismo requer equipe multidisciplinar e é de extrema importância. É necessário avaliar a presença de síndrome de abstinência e tratá-la, quando presente.


Após a alta hospitalar, o paciente deve ser encaminhado para um especialista. Em caso de pacientes sem lesão renal, deve-se considerar o uso de baclofeno. Na ausência de contraindicações, deve-se administrar prednisolona ou prednisona 40 mg nos casos graves (MELD > 20 e/ou índice de Maddrey > 32).


No sétimo dia da medicação, deve-se calcular o escore de Lille para avaliar resposta. Alternativamente, é possível calcular no quarto dia. Caso o escore seja menor que 0,45, recomenda-se completar quatro semanas da prednisona. Caso maior ou igual a 0,45, recomenda-se parar a corticoterapia e considerar transplante hepático precoce em locais em que esse é disponível ou inserção em trials clínicos com medicações promissoras, como acetilcisteína e G-CSF (granulokine).


Em 2011, Mathurin e colaboradores publicaram um estudo que incluiu 26 pacientes com hepatite alcoólica grave sem resposta aos glicocorticoides. Todos foram submetidos a transplante hepático precoce. A sobrevida em seis meses foi muito maior nesse grupo do que em uma série histórica de pacientes com doença grave semelhante (77% versus 23%).


No Brasil, as políticas de transplante hepático requerem, no mínimo, seis meses de abstinência etílica. Dessa forma, o transplante hepático precoce ainda não é uma opção nos casos refratários em nosso país.


Mensagens práticas sobre hepatite alcoólica

A hepatite alcoólica é uma condição grave que ocorre em pacientes alcoolistas crônicos com padrão de consumo elevado. Sua incidência vem aumentando, principalmente após o período de pandemia de covid-19. Conhecer essa condição e saber tratá-la é de suma importância para médicos que atuam em serviços de atenção primária.


O cuidado multidisciplinar é de extrema importância para os pacientes com hepatite alcoólica, visto que há concomitância de doença hepática e alcoolismo. Muitas vezes, os estigmas relacionados ao alcoolismo atrapalham o tratamento e acompanhamento desses pacientes.



Autor: Fernanda Costa Azevedo
Fonte: pebmed
Sítio Online da Publicação: pebmed
Data: 17/01/2023
Publicação Original: https://pebmed.com.br/o-que-todo-medico-precisa-saber-sobre-hepatite-alcoolica/

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