As ciências são uma das grandes realizações da criatividade humana que, entrelaçadas às tecnologias, têm transformado a vida das pessoas. Embora não haja consenso na literatura sobre a melhor maneira de abordá-las, comunicá-las ou divulgá-las — se do ponto de vista teórico, técnico-experimental, histórico, filosófico, sociológico, antropológico, artístico ou cultural —, a História nos ensina que o conceito de “ciência” é dinâmico, mudando no espaço-tempo.
Aliadas à arte e a outras formas de saber e conhecer o mundo, as ciências desenvolvem papel fundamental nos processos de (re)invenção da vida e de construção de uma realidade menos morta.
Paradoxalmente, no momento em que eu escrevo este texto, a covid-19 (do inglês, COrona VIrus Disease 2019), a maior crise sanitária global do nosso tempo, já é responsável por quase 20 milhões de infecções e mais de 700 mil mortes no mundo, sendo que somente no Brasil ela já vitimou 100 mil pessoas e infectou outras 3 milhões. Além disso, as nossas contradições históricas nos ensinam que o Brasil tem sido um laboratório in vivo não apenas para repensarmos os processos de morte e mortandade de corpos historicamente excluídos da vida social — negros(as), pobres, mulheres, LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, trans e travestis), indígenas, idosos e deficientes —, mas também para refletirmos sobre os desdobramentos materiais e simbólicos da ciência aqui produzida.
Essas duas realidades, que são literalmente faces da mesma moeda, nos trazem desafios singulares e nos propõem novas reflexões sobre o valor e o papel da ciência e da tecnologia não apenas para confrontar desigualdades sociais, mas também para, em diferentes contextos, aprofundá-las.
Dito isso, e levando em conta o estado perverso atual de pós-verdade — vírus ideológico fomentado por notícias falsas, conspirações, negacionismos, racismos e interesses políticos e econômicos adversos —, penso que a circulação e a divulgação dos processos de ciência e de tecnologia no Brasil, sobretudo entre a população historicamente marginalizada e subalternizada, tornam-se urgentes.
É preciso que cientistas estabeleçam novas conexões de comunicação com a sociedade para a construção da verdade, entendida como a correspondência com a realidade e, de novo, limitada no espaço-tempo, altamente dependente de fatores externos à própria ciência, articulando não apenas novas formas de exercitar o bem viver, mas de viver a vida com pensamento crítico.
E, nesse sentido, com o objetivo fundamental de combater as nossas desigualdades estruturais, isto é, de (re)inventar a vida, penso que não teremos como estabelecer uma nova cultura de circulação e de divulgação das ciências, principalmente em meio à pandemia, sem que algumas ações imediatas sejam tomadas:
a sociedade brasileira precisa sentir-se parte do processo de construção da ciência, sem ser subjugada e subestimada;
precisamos criar um programa robusto nacional de divulgação e comunicação das ciências para expandir e fortalecer espaços de poder como museus (de ciências), observatórios, planetários, e estimular a criação de outras vias de comunicação das ciências com as pessoas (identificando iniciativas comunitárias), sobretudo aquelas que vivem a realidade do Brasil profundo. Na sociedade contemporânea, a criação de políticas públicas voltadas à ciência é altamente dependente de uma política efetiva de comunicação;
as universidades brasileiras precisam criar, em seus programas de ensino, pesquisa e extensão, novas epistemologias de estudo e ações de comunicação científica que passam, sem dúvida, primeiro por um novo projeto de formação inicial e continuada em todas as áreas de conhecimento, e segundo pela democrática circulação de suas múltiplas ações. É inadmissível que pessoas não saibam que o Hospital de Clínicas de Porto Alegre pertence à UFRGS ou que não conheçam o Observatório Astronômico da Universidade, um prédio belíssimo, centenário, patrimônio histórico-cultural-científico;
é preciso garantir que a divulgação das ciências aporte permanentemente para o desenvolvimento da educação básica na construção coletiva de atitudes críticas frente à ciência; e
é necessário que cientistas deixem a zona de conforto, ampliem colaborações, redes e formas de comunicação com a sociedade, explorando os limites de uma única disciplina e ambientes culturais (aldeias, quilombos, periferias).
A literatura especializada nos oferece formas variadas de circulação e divulgação das ciências que precisam ser colocadas em prática cada vez mais:
tecnologia “olho no olho”;
Facebook, Twitter, YouTube, Instagram, blogs, podcasts, páginas pessoais/institucionais e outras multimídias;
livros, cadernos, artigos, revistas, jornais;
expressões artísticas — teatro, documentário, vídeo, cinema, sarau, slam, contação de história, concerto, mostra, espetáculo;
exibições, exposições e atividades variadas em espaços vivos (flora e fauna), centros e laboratórios de pesquisa;
eventos (inter)nacionais, MOOCs, conferências, workshops, seminários, webinars, feiras, rodas de conversa, cafés científicos, portas abertas, clubes de ciências, excursões, acampamentos, demonstrações de experimentos, concursos, maratonas, olimpíadas, cursos e escolas de verão/inverno; e
estreitamento sinérgico da relação Universidade-escola-sociedade.
A realidade atual escancara as fragilidades do tecido social brasileiro e revela a relação simbiótica entre ciência, tecnologia e política. A circulação e a comunicação das ciências devem primar pela verdade científica e pela ética, e devem ser capazes de ajudar a ciência a (re)inventar a vida, possibilitando que outras humanidades entrem em cena, despertando seus afetos, aspirações e inspirações. Coletivamente, seremos capazes de avaliar quais são os riscos e benefícios da ciência e da tecnologia para construirmos uma outra relação humanidade-Natureza e uma nova cultura capaz de perceber a ciência como uma poderosa tecnologia social crucial para o estabelecimento da democracia plena no Brasil.
Ilustração: Laura Castilhos
Autor: ufrgs
Fonte: ufrgs
Sítio Online da Publicação: ufrgs
Data: 14/08/2020
Publicação Original: https://www.ufrgs.br/jornal/circulacao-e-divulgacao-das-ciencias-no-brasil-reinventando-vidas/
Fonte: ufrgs
Sítio Online da Publicação: ufrgs
Data: 14/08/2020
Publicação Original: https://www.ufrgs.br/jornal/circulacao-e-divulgacao-das-ciencias-no-brasil-reinventando-vidas/
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