segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Laboratório testa método alternativo para monitorar marisco ameaçado


As duas espécies mais comuns de berbigão na costa brasileira são Anomalocardia brasiliana (à esquerda) e Tivela mactroides (à direita). A Tivela mactroides é considerada uma espécie ameaçada de extinção no Estado de São Paulo – Foto: Rafael Simões/TV USP



Era uma quarta-feira chuvosa quando a reportagem do Jornal da USP encontrou com a oceanógrafa Thaís Fonseca Rech e o estudante Gabriel Akira Soto na Praia da Baleia, em São Sebastião, litoral norte de São Paulo. Munidos com um rastelo, duas pás pequenas e uma peneira, eles aproveitavam a trégua que a chuva deu no período da manhã para cavar buracos superficiais na areia molhada do trecho entre a maré mais alta e a maré mais baixa. Os dois jovens procuravam por animais da espécie Tivela mactroides, um molusco que cresce até os três ou quatro centímetros e é popularmente conhecido como berbigão, vôngole ou sapinhoá..

A busca pelo berbigão faz parte de um grande projeto de monitoramento que existe desde 2002 e é ligado ao Laboratório de Manejo, Ecologia e Conservação Marinha do Instituto Oceanográfico da USP, onde Thaís desenvolve sua pesquisa de mestrado em Oceanografia. A Tivela mactroides é considerada uma espécie ameaçada de extinção no Estado de São Paulo. Foi isso que motivou os pesquisadores do laboratório a estudarem a ocorrência da espécie, inicialmente, na Enseada de Caraguatatuba.

“A Enseada de Caraguatatuba foi selecionada para esse estudo amplo que a gente faz com o berbigão porque é o local onde ele é mais abundante no litoral norte e, talvez, na costa do Brasil”, diz o biólogo Alexander Turra, atual professor responsável pelo Laboratório de Manejo do IO. Dados obtidos pelo grupo entre 2006 e 2007 indicam uma densidade de até 16 mil berbigões por metro quadrado no local.



Conhecimento dos oceanos ainda é muito pequeno no mundo

Além de ser um animal comum na costa brasileira, o molusco também é um recurso sociocultural importante, muito utilizado na culinária tradicional caiçara. Uma estimativa da equipe do laboratório para o ano de 2005 indica que a densidade de berbigões na Enseada de Caraguatatuba foi capaz de sustentar uma coleta anual de 30 toneladas. Do ponto de vista social, o problema é que a inclusão do berbigão na lista estadual de espécies ameaçadas transformou sua coleta em crime ambiental.



Com a bagagem da vivência na região, então, os pesquisadores questionaram a decisão de incluir a Tivela mactroides na lista. O grupo queria saber se o berbigão estava realmente restrito geograficamente e se tornando uma espécie rara, o que justificaria a decisão. O estudo de Thaís utiliza uma metodologia alternativa para avaliar em quais praias do litoral norte paulista o molusco ocorre e tentar responder a estes questionamentos. O primeiro passo nessa direção foi levantar informações sobre a distribuição do berbigão por meio da análise de publicações científicas e registros de museus. Ela também entrevistou pesquisadores que trabalharam com o berbigão e conhecem o litoral paulista.

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Depois de coletar informações nas redes sociais, é necessário fazer uma busca ativa para constatar se o berbigão está presente em cada uma das praias selecionadas para a pesquisa – Foto: Rafael Simões/TV USP

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“E, aí, a gente começou a entrar numa abordagem um pouco mais relacionada com os possíveis usuários desse animal. As comunidades tradicionais e também turistas e moradores da região que não necessariamente pertencem às comunidades tradicionais, mas que, ao terem contato com a natureza, com essas praias, podem registrar a presença do berbigão dentro de uma estratégia que a gente denomina ciência cidadã”, conta Turra.

“A ciência cidadã é um método que usa a colaboração, a participação das pessoas durante a produção da ciência. Nesse caso, não como fontes. Elas ativamente trazem coisas para o projeto”, explica a oceanógrafa, que criou uma página no Facebook chamada “Cadê o Berbigão?” e uma conta no Instagram com o mesmo nome para recolher registros fotográficos do animal nas praias do litoral norte paulista.
Redes sociais tiveram papel no trabalho de campo

Quando nos encontramos com Thaís e Gabriel, eles estavam desde a semana anterior percorrendo praias de Ubatuba, Caraguatatuba e São Sebastião para coletar o molusco. A escolha das praias seguiu alguns critérios: são praias planas, de areia fina e bem abrigadas das ondas. “Hoje deu essa virada no tempo e o mar está bastante agitado”, comentou Thaís.


A oceanógrafa Thaís Fonseca Rech é aluna de mestrado do Instituto Oceanográfico da USP – Foto: Rafael Simões/TV USP

Praias com mar agitado não costumam ter berbigão. Além de influenciar na alimentação – o berbigão se alimenta filtrando a água que passa rente à areia – o vai e vem das ondas desenterra o animal. Quando as ondas são muitos frequentes, ele não consegue se enterrar novamente e acaba sendo lançado para longe da água, onde encalha e morre.

Um critério adicional para a escolha das praias pesquisadas foram as fotos enviadas pelas redes sociais. Thaís consegue identificar a espécie de molusco a partir das características das conchas e da articulação que as une. Apenas imagens de conchas unidas são consideradas, pois indicam que a morte do animal foi recente. Isso possibilita descartar a hipótese de que tenham sido trazidas de outras praias pelas correntes oceânicas.

Em campo, a principal tarefa da mestranda do Instituto Oceanográfico era perguntar às pessoas no local se já haviam encontrado conchas de berbigão lá. Não deu sorte na Praia da Baleia. Com frio e chuva, não havia ninguém na praia pela manhã. Quando o tempo colabora e a oceanógrafa chega a uma praia onde não tem um contato previamente estabelecido, ela conversa com quem está na rua. Esses entrevistados, então, indicam outras pessoas para novas entrevistas, o que permite realizar a pesquisa junto às comunidades locais.

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Tempo chuvoso atrapalhou o trabalho de campo na Praia da Baleia, em São Sebastião – Foto: Rafael Simões/TV USP

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Cavar é a tarefa de Gabriel. Estudante de graduação do Instituto de Biociências da USP, ele está fazendo a iniciação científica no Laboratório de Manejo do IO. “Se as pessoas mandam foto falando qual é a praia, ela (Thaís) já infere que ocorre berbigão nessa praia. Então, eu estou verificando essa associação, se quando a pessoa manda uma foto da concha unida é possível realmente dizer que existe o berbigão vivo na praia”, conta o estudante.
Cresce o mapa do berbigão

A busca pelo berbigão na Praia da Baleia foi feita por esforço visual e rendeu poucos frutos até a hora em que os estudantes tiveram de suspendê-la, para escapar da chuva. Isso não quer dizer que o animal não estivesse lá. “Esse método não possibilita afirmar em quais praias a espécie não ocorre”, diz a bióloga Márcia Denadai, presidente executiva do Instituto Costa Brasilis e integrante da equipe do Laboratório de Manejo, Ecologia e Conservação Marinha do IO. “Então, o método que vem sendo utilizado apenas possibilita ampliar a ocorrência da espécie para o maior número de praias do litoral norte”, completa.


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Apesar das limitações, a metodologia alternativa vem conseguindo ampliar o mapa de distribuição da Tivela mactroides para praias onde sequer havia registros científicos. “O que a gente tem visto em todos os dados, inclusive esses provenientes dessa dissertação de mestrado da minha aluna Thaís, é que o berbigão não necessariamente está num índice num status de ameaça muito grande. Ele tem sim uma certa vulnerabilidade porque é um animal de praia, e as praias estão sendo ameaçadas”, afirma Alexander Turra. As principais ameaças para o futuro, neste caso, seriam a erosão da costa e a poluição.


A avaliação do grupo do IO confronta a decisão da comissão técnica da Secretaria do Meio Ambiente, que incluiu o berbigão na lista da fauna ameaçada publicada no decreto estadual 60.133 de 2014. Cecília Amaral, professora da Unicamp que presidiu a Comissão de Invertebrados Marinhos, afirma que a Tivela mactroides foi incluída na categoria “ameaçada de extinção” devido à “intensa exploração para ser comercializada e principalmente para consumo próprio”.



O estudante Gabriel Akira Soto faz pesquisa de iniciação científica junto ao Laboratório de Manejo, Ecologia e Conservação Marinha – Foto: Rafael Simões/TV USP

Luiz Ricardo Simone, professor do Museu de Zoologia da USP que não integra o projeto do Laboratório de Manejo do IO, acrescenta que o berbigão sofre, ainda, com a captura intensiva de um crustáceo conhecido como corrupto, pois a prática desaloja o molusco por engano. O corrupto não é utilizado na alimentação humana, mas serve como isca para a pesca. “Isso está dizimando a espécie (de berbigão), fazendo-a desaparecer na maioria das praias do Estado”, afirma Simone.

Munido de dados do monitoramento do IO, Turra defende que a lista de espécies ameaçadas de extinção não é o instrumento mais apropriado para combater as ameaças que o berbigão enfrenta hoje. “A gente inclusive entende que o estímulo à coleta e ao consumo consciente é uma forma de se garantir a conservação do berbigão, porque as pessoas terão uma conexão maior com a espécie e poderão atuar de forma direta ou indireta na conservação”, defende Turra.

Com a colaboração de Tabita Said




Autor: Jornal da USP
Fonte: Jornal da USP
Sítio Online da Publicação: Jornal da USP
Data: 05/10/2018
Publicação Original: https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-biologicas/laboratorio-testa-metodo-alternativo-para-monitorar-marisco-ameacado/

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