quinta-feira, 9 de junho de 2022

Hipoglicemia neonatal: documento científico da SBP

Durante as primeiras 48 horas de vida, muitos recém-nascidos (RN) saudáveis podem apresentar hipoglicemias devido à adaptação fisiológica à vida extrauterina. Essa adaptação ocorre pois há uma maior necessidade cerebral de glicose e imaturidades enzimáticas e hormonais.

A hipoglicemia é o distúrbio metabólico mais frequente no período neonatal, podendo se apresentar de forma persistente (> 3 dias) ou transitória (< 3 dias). As hipoglicemias recorrentes ou prolongadas requerem maior atenção devido a consequências neurológicas e no desenvolvimento. Sua fisiopatogenia se baseia num desequilíbrio entre o fornecimento de glicose e sua utilização e outros combustíveis alternativos.


Definição 

Em adultos,  a “tríade de Whipple” consiste em sintomas associados à hipoglicemia, glicemia inferior a 60 mg/dL e melhora dos sintomas após a ingestão de glicose. Porém, a definição de hipoglicemia no período neonatal continua controversa. A maioria dos consensos preconiza:

Até 48 horas de vida: menor que 50 mg/dL;

De 48 a 72 horas de vida: menor que 60 mg/dL;

Acima de 72 horas de vida: menor que 70 mg/dL. 

Clínica

Pode variar de sintomas mais leves, como choro intenso, palidez, cianose, agitação, tremores, irritabilidade e hipotermia a sintomas mais graves, como apneia, depressão respiratória, convulsão, letargia e instabilidade hemodinâmica.

No entanto, essas manifestações clínicas também podem ocorrer em outras doenças neonatais, como na sepse, anemia, acidose, cardiopatias e distúrbios hidroeletrolíticos.

Aferição

Orienta-se dosar a glicemia plasmática para a confirmação da hipoglicemia, pois a glicemia capilar medida por glicosímetro à beira-leito pode se apresentar de 10% a 15% inferior à glicemia plasmática.

O atraso no transporte e processamento tardio podem evoluir com hipoglicemia sérica falso-positiva. Em paralelo, extremidades frias, cianóticas ou excesso de álcool para limpeza também podem causar uma falsa hipoglicemia capilar.

Fatores de Risco

A aferição da glicemia só deve ser feita em pacientes com fatores de risco ou com manifestações clínicas.

Dentre os fatores de risco conhecidos, destacam-se: prematuridade, RN pequeno para a idade gestacional (PIG) ou grande para a idade gestacional (GIG), retardo do crescimento intrauterino (CIUR), pré-eclâmpsia, menor dos gêmeos, filhos de mães diabéticas ou diabetes gestacional, asfixia perinatal, policitemia, eritroblastose fetal, doenças graves, doenças congênitas ou genéticas, sinais sugestivos de hipopituitarismo ou hiperinsulinismo, história familiar de hipoglicemia neonatal ou feto macrossômico, uso materno de betabloqueadores ou beta-agonistas.

Causas

Mais da metade das hipoglicemias neonatais são transitórias (< 3 dias) e assintomáticas. Apenas 15% apresentam-se de forma transitória e sintomática. Outros 35% estão associados a outras doenças e 2% são persistentes ou recorrentes (> 3 dias).

Hiperinsulinismo congênito: Causa mais comum de hipoglicemia neonatal persistente, com alta morbimortalidade, mas também pode se apresentar da maneira transitória ou associada a síndromes. As principais causas são: filhos de mães diabéticas, prematuridade, CIUR, asfixia perinatal, isoimunização Rh, uso de soluções de glicose hipertônica pela gestante, mutações inativadoras ou ativadoras de alguns genes, distúrbios congênitos da glicosilação e tirosinemia tipo 1, e síndromes, como Beckwith-Wiedemann, Sotos, Perlman, Simpson-Golabi-Behmel, Patau, Costello, Usher, Timothy e Kabuki;

Deficiência do hormônio de crescimento (GH) ou do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH): Causam hipoglicemia pela diminuição da glicogenólise, lipólise e gliconeogênese, levando a cetose que não responde ao glucagon. Essas deficiências podem ser isoladas ou associadas ao hipopituitarismo neonatal;

Deficiência do cortisol por insuficiência adrenal primária: Há diminuição da gliconeogênese e da produção hepática de glicose, além de cetose que não responde ao glucagon. Pode haver também insuficiência adrenal primária cursando com atipia genital, distúrbios eletrolíticos e crise de perda de sal;

Galactosemia: Por deficiência da enzima galactose-1-fosfato-uridil-transferase, levando ao acúmulo tóxico da galactose-1-fosfato. É diagnosticada pelo teste do pezinho e causa hipoglicemia pós-prandial. O tratamento é baseado na eliminação da galactose da dieta;

Distúrbios da glicogenólise: Doenças hereditárias que causam anormalidades das enzimas e transportadores que regulam a síntese e degradação do glicogênio. Todos esses distúrbios apresentam hipoglicemia como manifestação primária. O diagnóstico se dá pelo estudo da deficiência enzimática específica e o tratamento é feito através de alimentação em curtos intervalos.

Distúrbios da gliconeogênese: Os principais são deficiência da frutose 1,6 difosfatase, deficiência da piruvato carboxilase e deficiência da fosfoenolpiruvato carboquinase. Há intolerância ao jejum prolongado com hipoglicemia recorrente associada a acidose láctica com ou sem cetose. O diagnóstico é por análise molecular;

Distúrbios do metabolismo dos aminoácidos: Principalmente na doença do xarope de bordo, acidemia propiônica, acidemia metilmalônica e acidemia glutárica tipo II. Há hipoglicemia, acidose metabólica e anion gap O tratamento é baseado em se evitar jejum prolongado e no uso de dietas especiais;

Distúrbios do metabolismo dos ácidos graxos: Principalmente as deficiências de MCAD e de carnitina.

Diagnóstico

Para o correto diagnóstico da hipoglicemia neonatal, é necessária uma abordagem sistemática com história clínica detalhada, incluindo fatores de risco neonatais e maternos, sintomas, evolução e tratamento anterior, além de exame físico completo e investigação laboratorial.

Alguns autores recomendam que RN com glicemias abaixo de 60 mg/dL, após 48 horas de vida, necessitam de investigação etiológica. Outros autores consideram essa investigação apenas em hipoglicemias que persistem mais de sete dias ou que necessitem de mais de 10 mg/kg/minuto de taxa de infusão de glicose (TIG).

Pacientes com hipoglicemia em jejum

Para fins diagnósticos, o ideal é a coleta de exames diagnósticos na vigência da hipoglicemia (amostra crítica). Para a coleta correta, é necessário que a criança esteja em dieta zero, em jejum pela manhã e com infusão de glicose suspensa. A glicemia capilar deve ser coletada a cada 30 a 60 minutos, até que um resultado inferior a 50 mg/dL seja obtido. Quando uma glicemia abaixo desse valor for detectada,  é efetuada a coleta da amostra crítica. Após, é possível infundir 1 mg de glucagon intravenoso (IV) e coletar glicemia e insulina após 10, 20 e 30 minutos.

É importante pensar em hiperinsulinismo quando não houver elevação da glicose acima de 30 mg/dL do basal com aumento da insulina.

Após esses procedimentos, reiniciar dieta e soro glicosado.

Se a glicemia não cair abaixo de 50 mg/dL com 6 horas de jejum, o teste também deverá ser encerrado.

A amostra crítica deve ser encaminhada para a realização de gasometria, lactato, insulina, peptídeo-C, beta-hidroxibutirato, ácidos graxos livres, perfil de acilcarnitinas, amônia, aminoácidos e sumário de urina.

Pacientes com hipoglicemia pós-prandial

Coleta-se a amostra crítica após o estímulo alimentar que provoque a hipoglicemia.

Exames adicionais podem ser necessários, como ultrassom abdominal, tomografia e cintilografia hepáticas.

Na amostra crítica, devemos estar atentos na presença ou não de acidose:

Sem acidose

Ausência de cetose e ácidos graxos livres: hipoglicemia em curto a moderado período de jejum. Pensar em PIG, GIG, asfixia perinatal, filho de mãe diabética, hipopituitarismo neonatal ou hiperinsulinismo congênito.

Ausência de cetose e ácidos graxos livres elevados: hipoglicemia em período de jejum prolongado. Pensar em defeitos genéticos na oxidação de ácidos graxos e cetogênese.

Com acidose 

Com lactato elevado, hipoglicemia em curto período de jejum. Pensar em doença de depósito do glicogênio tipo 1 ou defeito na gliconeogênese hepática.

Presença de cetose: hipoglicemia em moderado período de jejum. Pensar em doença de depósito do glicogênio tipo 3, 6 e 9 ou hipoglicemia cetótica ou deficiência de hormônio do crescimento e/ou cortisol.

Tratamento

Na hipoglicemia assintomática, podemos tentar aumento da frequência das mamadas, de preferência por leite materno, mas podendo ser utilizadas fórmulas artificiais. Deve-se evitar jejum prolongado.

Um dos tratamentos atualmente preconizados é o gel de dextrose a 40% (200 mg/kg). Este pode ser usado na mucosa bucal antes da alimentação de RN a termos ou prematuros com hipoglicemias nas primeiras 48 horas após o nascimento.

Pode-se tentar também, inicialmente, dieta via oral ou por sonda gástrica. Se após essa medida não houver melhora da glicemia capilar, opta-se por internação em Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) para tratamento IV.

Em via IV, é feita a administração de 2 a 4 mL/kg de glicose a 10%, seguido de soro glicosado com TIG de 5 a 8 mg/kg/minuto.

A meta é manter a glicemia entre 40 e 50 mg/dL em RN sintomáticos.

RN sintomático e glicemia < 40 mg/dL: Iniciar glicose IV;

RN assintomático nas primeiras 4 horas de vida: Dieta dentro da primeira hora e nova glicemia capilar após 30 minutos da dieta.

Se glicemia < 25 mg/dL: administrar glicose IV.

Se glicemia entre 25-40 mg/dL: realimentar ou administrar glicose IV.

RN assintomático de 4 a 24 horas de vida: Dieta a cada 2-3 horas e glicemia antes de cada dieta.

Se glicemia < 35 mg/dL: repetir dieta e nova glicemia após 1hora. Se mantiver glicemia < 35 mg/dL: administrar glicose IV.

Se glicemia entre 35-45 mg/dL: realimentar ou administrar glicose IV.

A hipoglicemia hiperinsulinêmica é a principal causa hereditária de hipoglicemia no período neonatal. Por vezes é necessária TIG acima de 15 mg/kg/minuto e acesso venoso central para concentrações de glicose acima de 15 a 20%. Deve-se suspeitar de hipoglicemia hiperinsulinêmica quando não é possível manter glicemia acima de 45 mg/dL após 24 horas de uma TIG de 8 mg/kg/minuto. O tratamento de primeira linha para esses casos é o diazóxido (medicação não disponível no Brasil). Já o tratamento de segunda linha é o octreotida, feito por via subcutânea de 6 a 8 horas ou infusão contínua em uma dose inicial de 5 micrograma/kg/dia. Outros medicamentos como análogos sintéticos da somatostatina, lanreotida e LAR-octreotida, também podem ser utilizados. Nos casos não responsivos ao tratamento medicamentoso ou em mutações em heterozigose paterna no ABCC8 ou KCNJ11, é indicada pancreatectomia subtotal.

Nos casos de hipoglicemia por distúrbios metabólicos, a terapia deve ser baseada em alimentação frequente por via oral e enriquecida com carboidratos. A via enteral pode ser uma opção para manter a oralidade. Por vezes, é necessária gastrostomia para administração de dietas hipercalóricas e com alto teor de carboidratos.

Até o momento, os glicocorticoides só devem ser utilizados na hipoglicemia por insuficiência adrenal primária ou secundária.

Conclusão

Infelizmente, a hipoglicemia neonatal é um fator de risco neurológico, porém, felizmente esse é tratável. Nos casos de hipoglicemia persistente, metade das crianças apresentam deficiência no desenvolvimento neurológico em longo prazo. Seu tratamento imediato previne complicações.




Autor: Larissa Pires Marquite da Silva
Fonte: PEBMED
Sítio Online da Publicação: PEBMED
Data: 09/06/2022
Publicação Original: https://pebmed.com.br/hipoglicemia-neonatal-documento-cientifico-da-sbp/

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