sexta-feira, 27 de julho de 2018

Descarte inadequado de baterias de celulares ameaça o meio ambiente*

Mais do que um ciclo vicioso, é uma reação em cadeia. O descarte inadequado de certos materiais, como pilhas e baterias de celular, contamina o solo de lixões e aterros sanitários, que, por ação da chuva, contamina lençóis freáticos, que contamina a terra de regiões próximas, o que por sua vez contamina as plantas que ali sejam cultivadas e os organismos vivos que as consomem. No caso de certos metais pesados, como o cádmio, podemos dizer que os efeitos dessa sequência negativa se voltam para aquele que lhe deu início: o homem.

“Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Tratamento, Recuperação e Disposição de Resíduos Especiais, a Abetre, dos 2,9 milhões de toneladas de resíduos industriais perigosos gerados anualmente no Brasil, apenas 600 mil toneladas recebem tratamento adequado”, fala a engenheira química Elis Eleutherio, coordenadora do Laboratório de Investigação de Fatores de Estresse (Life), do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IQ/UFRJ). Empenhada em encontrar soluções para a situação, que progressivamente se agrava – mais ou menos na mesma medida em que aparelhos eletrônicos se tornam mais e mais presentes no nosso dia a dia –, ela tem em mente dois objetivos: monitorar e propor medidas para remediação de cádmio, classificado como carcinogênico pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

As soluções habitualmente empregadas – precipitação química, troca iônica, filtração, tratamento eletroquímico, membranas e recuperação por evaporação – vêm se mostrando, além de dispendiosas, ineficientes, quando se pretende remover metais em baixas concentrações. Devido à sua elevada toxidez, a legislação ambiental em vigor (Resolução nº 430/2011, do Conselho Nacional do Meio Ambiente, Conama) determina que o máximo de cádmio admissível em efluentes seja de 0,2 mg/ L. Ou seja, a quantidade dos chamados resíduos provenientes das indústrias, dos esgotos e das redes pluviais, que são lançados no meio ambiente, na forma de líquidos ou de gases. A equipe coordenada por Elis buscou desenvolver tecnologias de baixo custo que viabilizassem a recuperação desse metal em efluentes e águas contaminados. A saída encontrada foram os micro-organismos. Mais precisamente, as leveduras da espécie Saccharomyces cerevisiae, as mesmas habitualmente empregadas no preparo de pão, do vinho e da cerveja.

Foi o que a pesquisadora propôs no projeto “Biorremediação e aplicação de biossensor microbiano para detecção e avaliação da toxicidade em ambientes contaminados por metais pesados”, que contou com recursos do edital Apoio ao Estudo de Soluções para Problemas Relativos ao Meio Ambiente, da FAPERJ. O projeto teve a participação de mais cinco grupos de pesquisa, coordenados pelos professores Marcos Dias Pereira, Bianca Cruz Neves, Gilberto Domont, Joelma Freire e Claudia Vilela, especialistas nas áreas de avaliação da genotoxicidade e citotoxicidade de xenobióticos, biologia molecular e genética molecular de micro-organismos, espectrometria de massas de proteínas, bioinformática e avaliação de bioindicadores de poluição ambiental, respectivamente.

“Embora o Conama determine que as pilhas devam ser fabricadas com 0,0005% em peso de mercúrio, 0,002% em peso de cádmio e 0,1% em peso de chumbo, boa parte de pilhas e baterias que circulam no mercado brasileiro são cópias das originais e, portanto, não trazem identificação de componentes. Com isso, diversos produtores internacionais não se responsabilizam pelo seu descarte”, alerta a engenheira. Acrescente-se o fato de que o uso de cádmio em baterias cresceu paralelamente à proliferação do uso de celulares e eletrônicos. “Estamos falando do número desses aparelhos, cujo uso cresceu de 8%, em 1970, para 75%, em 2000. Desde o fim da década de 1990, as baterias de NiCd – a bateria de níquel cádmio – vêm sendo substituídas por baterias de NiMH, níquel metal hidreto, e de íons de lítio. Mesmo com uma legislação ambiental cada vez mais rígida, com o uso da tecnologia da mineração em grande escala e o crescente consumo de metais pela indústria, sempre haverá o risco de contaminação, tanto do ambiente quanto dos trabalhadores desse tipo de indústria”, fala a pesquisadora.

O esquema acima demonstra a relação da concentração do metal com a substância produzida pela levedura geneticamente modificada


Sendo assim, é preciso tomar todas as precauções possíveis para evitar que se repitam acidentes com metais tóxicos, como foi o caso da Companhia Mercantil e Industrial Ingá, indústria de zinco, situada na Ilha da Madeira, próxima a Itaguaí, na Baía de Sepetiba, a 85 km do Rio de Janeiro, que se tornou o maior passivo ambiental do estado do Rio de Janeiro. No terreno da mineradora, que faliu em 1998, foram abandonados 390 mil m³ de efluentes líquidos, formando uma bacia com 260 mil m². Parte desses efluentes vazou, contaminando não somente os terrenos próximos, mas também as águas da Baía de Sepetiba e a vegetação do mangue circundante, com zinco, cádmio, mercúrio e chumbo, afetando seriamente a vida da população local. Em novembro de 2015, o rompimento da barragem da mineradora Samarco, em Mariana, Minas Gerais, provocou outro acidente do gênero. Metais pesados, entre eles cádmio, acima do índice permitido, foram detectados em espécies de peixes e camarões analisadas em diferentes pontos da bacia do rio Doce, inclusive em sua foz.

Como os efeitos do cádmio são cumulativos, todo cuidado é pouco, já que mesmo em baixas concentrações, uma contaminação repetida pode ter resultados desastrosos a médio e longo prazo. Afinal, sua presença em níveis acima do tolerado está associada a certas doenças e a vários tipos de câncer.

No Japão, durante as primeiras décadas do século XX, a cidade de Kamioka tornou-se tristemente conhecida pela alta incidência de uma doença óssea, batizada como “itai-itai”, entre os trabalhadores de uma mineradora. Mais tarde verificou-se que a doença estava associada ao envenenamento por cádmio. Esse tipo de intoxicação causa alteração metabólica de minerais importantes para o organismo humano, dentre eles o cálcio, deixando os ossos extremamente fragilizados e passíveis de fraturas. No caso japonês, isso se traduzia nos relatos contundentes de fortes dores que todos os doentes repetiam.

“Um trabalho feito no Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Solos e Recursos Ambientais, do Instituto Agronômico de Campinas, no interior de São Paulo, constatou a presença de metais pesados em solos agricultáveis, não só de São Paulo, mas também de outras regiões do Brasil. Verificou-se que a quantidade de cádmio estava acima do permitido e que isso estava muito disseminado”, diz Elis. Ela explica que, se a contaminação é comum em regiões próximas a atividades de mineração de cobre, zinco e chumbo, ou em áreas onde que há o descarte inadequado de material eletrônico, como os lixões, outra fonte de contaminação – acredite-se – seria a própria forma de fertilização do solo. Isso porque um dos complementos habituais empregados para fertilizar o solo para a agricultura é o zinco. “A longo prazo, o que acontece é que as pequenas quantidades de cádmio associadas a esse zinco terminam se acumulando e impregnando o solo. Daí a necessidade de constantes monitoramentos para saber quanto de cada metal há no solo”, argumenta a pesquisadora.

A questão é que essa contaminação não é meramente pontual. “Tanto as amostras colhidas por conta da proximidade de certas atividades quanto por conta do uso de fertilizantes na agricultura nos chamaram muito a atenção. A contaminação está presente em ambos os tipos de amostras, o que nos fez ver a seriedade do problema”, destacou.

Desta forma, os alimentos são facilmente alvo de contaminação por cádmio. Como resultado do fenômeno de bioacumulação, as quantidades subtóxicas presentes no ambiente podem atingir níveis de risco nos elos finais da cadeia trófica. A meia vida do cádmio no organismo é de aproximadamente 20 anos nas células do fígado e dos rins.


As leveduras Saccharomyces cerevisiae


Mas como remediar os ambientes contaminados? A proposta do projeto coordenado por Elis é usar a levedura Saccharomyces cerevisae. A remoção de metais, baseada em tecnologia empregando micro-organismos, se torna bastante promissora já que eles apresentam uma alta seletividade e baixo custo para produção, podendo ser utilizados para recuperação desses metais dos ambientes. Há mais de quinze anos, o Laboratório de Investigação de Fatores de Estresse (Life) usa Saccharomyces cerevisiae para estudar os mecanismos de tolerância a condições de estresse, em especial os causadas por cádmio. A partir desses estudos foram identificados os genes envolvidos na homeostase intracelular de metais que, ao serem manipulados através de engenharia genética, levariam ao desenvolvimento de uma levedura capaz de remover cádmio de ambientes contaminados com posterior recuperação do metal. “Modificadas geneticamente, as leveduras são capazes de absorver completamente todo o metal presente no meio, mesmo quantidades mínimas, o que sempre foi um problema com os outros métodos”, explica. “Em seguida, as leveduras seriam removidas para um ambiente confinado, onde excretariam o metal, para posterior incineração ou reciclo. As leveduras livres do cádmio poderiam então ser reutilizadas.”

As leveduras podem resolver ainda o problema do monitoramento constante. “Como as análises são caras, vimos a necessidade de desenvolver um biossensor, simples o suficiente para permitir que o monitoramento fosse feito por um leigo”, ressalta.

Usando genes que respondem à presença de cádmio, o grupo vem desenvolvendo uma levedura geneticamente modificada que muda a coloração do meio quando em contato com o metal. Quanto mais intensa a cor, maior a concentração do metal naquele meio (Fig.1). Para usar esta levedura no monitoramento de cádmio no ambiente, a ideia da equipe é imobilizá-la em um tablete ou em um papel especial que seria colocado em contato com o contaminante para observação da mudança de cor. “Isso possibilita visualizar a presença do cádmio. E o que é melhor, de forma bem barata”, conclui.

O cádmio e suas aplicações

A atmosfera terrestre recebe cerca de 400 toneladas de cádmio por ano. Noventa por cento desse total provém da atividade humana; o resto, dos incêndios florestais, dos vulcões e do desgaste do solo e das rochas. Subproduto da indústria do zinco, outras fontes de contaminação de cádmio vêm das indústrias de ferro e aço, do uso de combustíveis fósseis e dos fertilizantes. Como um bom condutor de eletricidade, ele serve para a fabricação de componentes eletrônicos; 80% da indústria são dedicados à produção das baterias recarregáveis que alimentam aparelhos domésticos, como telefones sem fio, controles remotos e brinquedos. É empregado em galvanoplastia e em ligas metálicas de baixo ponto de fusão. Alguns compostos de cádmio são utilizados como pigmentos – por exemplo, sulfeto de cádmio é empregado como pigmento amarelo – ou como estabilizantes de plásticos (como no PVC).

* Reportagem originalmente publicada em Rio Pesquisa, Ano IX, nº 37 (dezembro de 2016)



Autor: Vilma Homero
Fonte: Faperj
Sítio Online da Publicação: Faperj
Data de Publicação: 26/07/2018
Publicação Original: http://www.faperj.br/?id=3601.2.3

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