quarta-feira, 11 de julho de 2018

Batalhas sem fim



Em 2016, ao lado do senador Cristovam Buarque (à esq.), Helena Nader, da SBPC, integrou uma comissão de instituições de ciência e tecnologia e ensino superior e entregou uma carta ao senador Renan Calheiros (à dir.) pedindo a rejeição dos vetos presidenciais ao Marco LegalImagem: Jane de Araújo / Agência Senado

Em junho de 2018, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ao lado da Academia Brasileira de Ciências (ABC), da Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap), encabeçava uma lista de 56 instituições de ensino e pesquisa que assinavam uma mensagem de protesto contra os cortes no orçamento federal de ciência e tecnologia. Encaminhada ao presidente da República, aos ministros da Ciência e Tecnologia e da Educação e aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a nota mostra como são aparentemente intermináveis as batalhas em defesa da pesquisa brasileira encampadas pela SBPC desde que começou a funcionar, em 1948, em São Paulo.
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Mesmo que não tenha obtido tantas vitórias quanto gostaria, a SBPC contribuiu para aumentar a visibilidade da produção acadêmica nacional, promover a profissionalização da carreira dos cientistas, fortalecer o movimento de criação das fundações estaduais de apoio à pesquisa e ampliar os debates sobre ciência, tecnologia, inovação e ensino superior, de acordo com dirigentes da associação e pesquisadores acadêmicos. Fez-se ouvir ao longo da elaboração da Constituinte de 1988 e nas discussões do Código Florestal, em 2012, e do Marco Legal de Ciência e Tecnologia, em 2017, entre outras situações em que foi consultada ou se manifestou, mesmo sem ter sido convidada. Sua atuação ora é discreta, em reuniões a portas fechadas em gabinetes de deputados e senadores, ora é pública, como na Marcha pela Ciência, que reuniu centenas de pessoas em várias capitais em 2017, em defesa dos investimentos no setor.

A SBPC emergiu em meio a conflitos. Em 1948, o governador paulista, Adhemar de Barros (1947-1951), decidiu intervir no Instituto Butantan e reduzir a pesquisa sem ligação direta com a produção de soros antiofídicos. O diretor do instituto, Eduardo Vaz (1947-1951), demitiu pesquisadores da área de química e endocrinologia. As demissões mobilizaram outros cientistas de São Paulo e incentivaram a criação da SBPC. “Apesar dos protestos, os pesquisadores não conseguiram deter a demissão dos cientistas do Butantan, que começaram a voltar a partir de 1951 com a saída de Vaz e a nomeação de um novo diretor”, comenta o médico sanitarista Nelson Ibañez, coordenador do Laboratório Especial de História da Ciência do Instituto Butantan, que examinou esse episódio em um artigo de 2006 na revista Cadernos de História da Ciência.



Os 10 pesquisadores cassados da Fiocruz em 1970, em foto da década de 1980Imagem: José de carvalho filho /Acervo Casa de Oswaldo Cruz

Em 1949, a SBPC começou a publicar a revista Ciência e cultura, com artigos de divulgação científica escritos por pesquisadores, e a promover as reuniões anuais – a primeira, em Campinas. E logo entrou em outras contendas. A associação reforçou a pressão das lideranças científicas para que o governo de São Paulo levasse adiante um dos artigos da Constituição de 1947, que previa a criação de uma fundação para o apoio à pesquisa científica, a FAPESP, formalizada em 1960 e em operação desde 1962. Nessa época, a SBPC teve um papel importante no reconhecimento social da identidade e do trabalho dos cientistas, ao defender salários melhores e contratos em tempo integral, argumenta o cientista político Antonio José Junqueira Botelho, professor do Instituto Universitário de Pesquisas da Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro, em um artigo de 1990 na revista Social Studies of Science.

Em 1964, o recém-implantado governo militar cassou 85 intelectuais e professores universitários, entre eles os educadores Anísio Teixeira (1900-1971) e Paulo Freire (1921-1997) e o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997). A SBPC manifestou sua preocupação com os afastamentos e a perseguição a professores e pesquisadores, que se intensificou, a partir de 1968, com o Ato Institucional nº 5. Em abril de 1970, o governo decretou a suspensão dos direitos políticos e a aposentadoria compulsória de um grupo de 10 pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro. Entre eles estava o médico e entomologista Herman Lent (1911-2004), um dos fundadores da SBPC, que em 1978 relatou o episódio no livro O massacre de Manguinhos (editora Avenir). O Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, noticiou a demissão coletiva em 3 de abril de 1970 com o título “Médici pune cientistas”. A Ciência e Cultura reproduziu a notícia e a Associação Médica do Estado da Guanabara enviou uma carta ao presidente da República – reproduzida no Correio – pedindo, sem nenhum sucesso, a revogação da dispensa dos pesquisadores.



A notícia do Correio da Manhã sobre a demissão coletivaImagem: José de carvalho filho /Acervo Casa de Oswaldo Cruz

“A SBPC tomou um posicionamento político claro, era contra a ditadura, mas a maior preocupação eram as interferências do governo na comunidade científica”, diz o físico Sergio Rezende, professor da Universidade Federal de Pernambuco, ex-ministro da Ciência e Tecnologia (2005-2010) e presidente de honra da agremiação. Muitos cientistas de várias áreas do conhecimento que apoiavam a SBPC foram presos – e alguns torturados – por contestar o governo militar. Alguns deles partiram para o exílio; outros decidiram arriscar e ficar no Brasil. Os físicos, em especial, criticaram abertamente o governo militar, sacrificando a própria carreira acadêmica, argumenta o físico Olival Freire Júnior, professor da Universidade Federal da Bahia (UFB), em um artigo de 2009 no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi.

Os recursos para as instituições de pesquisa começaram a escassear nos anos
1970, acompanhando a queda do crescimento econômico. “Os frutos do regime militar afluíam cada vez menos para os cientistas, que, até então, tinham sido uma clientela privilegiada”, observou a socióloga Ana Maria Fernandes (1948-2018) no livro A Construção da ciência no Brasil e a
SBPC (Editora UnB, 1990). Foi nessa época que a SBPC começou a se pronunciar publicamente de modo crítico sobre temas econômicos, sociais e políticos, incluindo a reintegração de professores aposentados compulsoriamente (os de Manguinhos seriam recontratados a partir de 1979).

A partir de meados dos anos 1970, “a SBPC se tornou um polo de aglutinação de quem queria debater”, comenta o antropólogo Otávio Velho, professor emérito do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que foi secretário e vice-presidente e é presidente de honra da associação. “Ao assumir a luta pela democracia, ao lado de outras associações, em certa medida a SBPC perdeu o papel singular de defender a ciência e sua agenda começou a se fragmentar”, diz Junqueira Botelho, atualmente professor visitante da Universidade Sofia, em Tóquio, no Japão. No mesmo período, ele ressalta, a ciência se tornava mais complexa, com maior participação dos governos federal e estaduais, além de outras agremiações que lutavam por seus espaços, a exemplo da Sociedade Brasileira de Física (SBF), criada em 1966 durante a reunião anual da SBPC, em Blumenau, Santa Catarina.



A instalação da Assembleia Constituinte, em 1987, resultou na Constituição de 1988, que favoreceu a criação de novas fundações estaduais de apoio à pesquisaImagem: Agência Brasil

Depois do choque do petróleo em 1973, quando o preço do combustível chegou a subir 400%, o governo militar, que já tinha iniciado a montagem de Angra I, reforçou a aposta nas usinas nucleares como uma das alternativas para minorar a crise energética. “As sociedades científicas e a SBPC foram veementemente contra”, relembra o físico José Goldemberg, atual presidente da FAPESP e ex-presidente da SBF (1975-1979) e da SBPC (1979-1981). “Apesar dos embates com o governo autoritário, a SBPC nunca foi fechada pelos militares”, destaca Goldemberg.

Em um documento de 15 páginas, de março de 1987, a Comissão de Estudos para a Constituinte da SBPC, coordenada pelo sociólogo José Albertino Rodrigues, professor da Universidade Federal de São Carlos, encaminhou propostas para a gestão de ensino, saúde, espaço territorial, meio ambiente, populações indígenas e ciência e tecnologia. Aprovada em 22 de setembro e promulgada em 5 de outubro de 1988, a Constituição estabelecia, no parágrafo 5º do artigo 218: “É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica”. Ao elaborarem suas Constituições, 21 estados determinaram a criação de fundos ou fundações para gerenciar os recursos destinados a essas duas áreas. Já funcionavam sete fundações estaduais de apoio à pesquisa – as de São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Alagoas, Pernambuco e Maranhão – e as da Paraíba e do Ceará estavam legalmente constituídas. A SBPC apoiou a criação de outras, ao lado dos então dirigentes da FAPESP Flávio Fava de Moraes, Francisco Romeu Landi (1933-2004) e Alberto Carvalho da Silva (1916-2002).

“Nos últimos 14 anos, conseguimos em muitos momentos buscar a modernidade na gestão de ciência e tecnologia e do ensino superior”, comenta a bioquímica Helena Nader, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ela esteve à frente da SBPC por três mandatos (de 2011 a 2017), além de ter sido vice-presidente nas duas gestões do matemático Marco Antonio Raupp (2007-2011), que substituiu quando ele deixou o cargo para assumir a Agência Espacial Brasileira.



Marcha pela Ciência em 2017, em São Paulo, contra os cortes no orçamento federal de ciência e tecnologiaImagem: Adriano Vizoni/Folhapress

Uma de suas grandes batalhas, na gestão de Raupp, foi o Código Florestal. Insatisfeitos com a proposta do governo federal, a SBPC e a ABC formaram um grupo de trabalho. Um dos resultados do esforço foi o livro O Código Florestal e a ciência: Contribuições para o diálogo (SBPC e ABC), lançado no Congresso Nacional, em Brasília, em 2011. “O Código Florestal teria saído pior sem nossas intervenções. Conseguimos aumentar a distância da área de mata próxima a rios a ser preservada. Não conseguimos incluir o mangue como um ecossistema estratégico, mas continuaremos lutando”, conta ela. “O diálogo com os parlamentares é difícil, mas possível.”

Também há derrotas. A mais recente, conta Helena, foi a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016 que congelou os gastos públicos, incluindo os de universidades e centros de pesquisa. “Escrevi artigos, falei com ministros e congressistas. Poderiam ter revertido, mas não quiseram, por falta de conhecimento sobre o impacto da ciência, tecnologia e inovação na economia de um país.”

Agora como presidente de honra, Helena irá em julho a uma audiência no Supremo Tribunal Federal sobre descriminalização do aborto, uma das bandeiras mais recentes da instituição. O livro A ciência e o Poder Legislativo no Brasil (SBPC, 2017) retrata as grandes lutas da instituição, mas certamente haverá muito mais. Em um artigo de 2008 na Folha de S.Paulo, Raupp observou: “Algumas décadas de luta ainda serão necessárias para colocar a ciência brasileira não somente em pé de igualdade com as nações mais avançadas, mas sobretudo a serviço do desenvolvimento socioeconômico do país”.

Artigos científicos
IBANEZ, N. et al. De Instituto Soroterápico a Centro de Medicina Experimental: Institucionalização do Butantan no período de 1920 a 1940. Cadernos de História da Ciência, v. 2, n. 1, p. 77-103. 2006.
BOTELHO, A. J. J. The professionalization of Brazilian scientists, the Brazilian Society for the Progress of Science (SBPC), and the state, 1948-60. Social Studies of Science, v. 20, n. 3, p. 473-502, ago. 1990.
FREIRE JR., O. et al. Ciência e política durante o regime militar (1964-1984): A percepção dos físicos brasileiros. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 4 (3), p. 479-85. 2009.

Livros
NADER, H. B.; OLIVEIRA, F. de; MOSSRI, B. de B. (orgs.) A ciência e o Poder Legislativo no Brasil – Relatos e experiências. SBPC: São Paulo, 1ª ed., 2017.
FERNANDES, A. F. A construção da ciência no Brasil e a SBPC. Brasília: Editora UnB, 2ª ed., 2000.

Autor: Carlos Fioravanti
Fonte: Revista Pesquisa FAPERJ
Sítio Online da Publicação: Revista Pesquisa FAPERJ
Data de Publicação: 10/07/2018
Publicação Original: http://revistapesquisa.fapesp.br/2018/07/05/batalhas-sem-fim/

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