segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Bolsista da FAPERJ tem tese sobre Nise da Silveira premiada pela Capes

Com um olhar que valoriza as ideias e a forma inovadora de tratamento psíquico, para além da figura mítica da psiquiatra Nise da Silveira, o antropólogo Felipe Magaldi foi o vencedor da categoria Antropologia do Prêmio Tese Capes de 2019. Magaldi realizou seus estudos no Programa de Pós-graduação em Antropologia do Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e contou com a bolsa "Doutorado Nota 10" da FAPERJ nos dois últimos anos de sua pesquisa.

“O trabalho de Nise foi reconhecido no âmbito da cultura e ela conquistou uma imagem heroica nesse meio, especialmente no Rio de Janeiro. Além deste aspecto, procuramos destacar na tese suas colaborações dentro da Psiquiatria para que sua contribuição volte a ser discutida em âmbito nacional, na formulação de políticas públicas e no campo médico e psicológico”, diz Magaldi. Ele teve como orientador o antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte, ex-diretor do Museu Nacional, que também mereceu distinção especial dos organizadores do prêmio. O Prêmio Capes de Teses é atribuído pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), agência do Ministério da Educação, desde 2006, tendo se tornado uma vitrine da excelência do trabalho de pesquisa realizado no País.

O trabalho de campo foi realizado nas instituições que se dedicam a manter viva a memória da médica no Rio de Janeiro, com destaque para o Instituto Municipal Nise da Silveira, no bairro do Engenho de Dentro, e a Casa das Palmeiras, em Botafogo. Além disso, o autor realizou um mapeamento da obra da médica – livros, artigos, entrevistas, catálogos, audiovisuais, reportagens, teses e dissertações – dispersa em sebos, arquivos públicos e acervos pessoais. Magaldi também entrevistou alguns de seus ex-colaboradores vivos. “O objetivo foi analisar a trama de atores e instituições desenvolvida através da trajetória de Nise da Silveira a partir da década de 1940, bem como o consequente surgimento de um saber original, que pressupõe tanto um método de tratamento em saúde mental quanto um tipo de conhecimento sobre a condição humana”, conta.

Conhecida e autonomeada como psiquiatra rebelde, Nise da Silveira ganhou esse apelido após se recusar, em 1944, a aplicar o eletrochoque como tratamento. Ela acabava de retornar ao trabalho como médica no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, após passar sete anos em exílio pelo Norte e Nordeste do País com seu marido, o médico sanitarista Mário Magalhães. Antes disso, Nise havia passado um ano e quatro meses na prisão, denunciada como comunista durante o governo de Getúlio Vargas. No período em que esteve presa, presenciou cenas marcantes que a motivaram a se negar a praticar a eletroconvulsoterapia.

“Quando entrei para o hospital, em meados da década de 1940, o tratamento em voga mais usado era o eletrochoque que provocava crises convulsivas, perda de consciência, mal-estar terrível, e também o coma insulínico. Doses eram injetadas e levavam o indivíduo a um estado de coma. Esses eram os principais tratamentos quando voltei das minhas aventuras de prisão, demissão e etc. e encontrei o ‘moderno’. Era o que tinha que aprender e praticar, mas a isso não me adaptava, não conseguia aceitar esses tratamentos”, disse Nise, em entrevista a Ferreira Gullar, em 1987.

Ao se deparar com trechos como o da entrevista a Gullar, Magaldi chama a atenção para a necessidade de um olhar que não esqueça a relação com a história. “Tento mostrar porque ela teve que ser rebelde, em reação ao modus operandi biomédico naquela conjuntura histórica específica. E ela foi uma das primeiras médicas no Brasil a fazer esse movimento de recusa a essas práticas, influenciada pelas ideias da psicanálise em Carl Jung, da filosofia de Spinoza e da dramaturgia de Antonin Artaud, entre outros autores”, diz.


Hotel da Loucura: inspirado na obra de Nise, projeto ganhou destaque na tese de Magaldi (Foto: Arquivo pessoal)


A recusa por parte de Nise a aplicar as técnicas em voga, levaram a diretoria do hospital a isolá-la no espaço de terapia ocupacional. Foi então que ela se associou ao artista plástico Almir Mavignier, que até então realizava trabalhos burocráticos, para a montagem de um ateliê no local. E é por esse trabalho que ela ganhou seu maior reconhecimento, especialmente no campo artístico. Amiga do crítico de arte Mário Pedrosa, as obras produzidas no hospital logo levaram a produção interna às galerias de arte. No entanto, de acordo com Magaldi, a maior preocupação dela estava na capacidade da pintura acionar o inconsciente e permitir a expressão daqueles que tinham sua comunicação oral comprometida, ou seja, seu foco estava no tratamento e não necessariamente no potencial estético.

Nise também se recusava a chamar os internos do hospital de “pacientes” e pedia que os chamassem de “clientes”, como forma de lembrar que todos ali estavam recebendo um serviço do Estado, e também em alusão ao ditado popular de que “o cliente tem sempre razão”. Ao destacar as ideias e técnicas utilizadas pela psiquiatra, Magaldi põe ênfase no papel do afeto. “A ideia do afeto como catalisador do processo de cura pressupunha que nenhum tratamento seria eficiente se não houvesse essa presença interessada da parte dos terapeutas. E essa noção de afeto ainda é algo que é preciso ser batalhado na questão do modelo manicomial que, na prática, se sustenta em internações e na hiperdosagem de psicofármacos”, defende.

O trabalho desenvolvido por Nise, retratado em filme com Glória Pires como protagonista, não ocorreu sem retaliações, e Magaldi dedica um capítulo de sua tese a alguns desses episódios. Entre os atos mais marcantes está o envenenamento dos cães e gatos que a psiquiatra utilizava como parte do tratamento, na década de 1970. “Nise da Silveira incomodava, pois inscrevia uma presença feminina, imigrante, nordestina, marcada por uma trajetória política comunista, em um meio masculino e conservador. Através de seu trabalho, animais, plantas e pacientes psiquiátricos passavam a ganhar o estatuto de pessoa, enquanto os médicos adeptos das práticas violentas eram denunciados como desumanos”, comenta.

Nise da Silveira morreu em 1999, aos 94 anos, mas sua produção continua viva no Centro Psiquiátrico Pedro II, que desde 2001 tornou-se o Instituto Municipal Nise da Silveira e mantém o atendimento dentro dos moldes preconizados por Nise no Engenho de Dentro, Zona Norte carioca. O local abriga o Museu de Imagens do Inconsciente, que reúne o trabalho dos clientes que passaram pelo local ao longo das décadas. Em 1956, ela já havia criado sua própria instituição, a Casa das Palmeiras, inicialmente fundada na Tijuca e atualmente localizada em Botafogo, Zona Sul do Rio. A Casa é destinada a dar continuidade ao trabalho terapêutico com os egressos de internações psiquiátricas. Entre os projetos que ela influenciou a criar postumamente estão o Hotel da Loucura, que ocupou o próprio Instituto no Engenho de Dentro e até mesmo um bloco de Carnaval, o Loucura Suburbana.


Em sua tese, Magaldi resgatou obras raras da médica e deu ênfase ao seu método de tratamento, nomeado por ele de 'psiquiatria rebelde' (Foto: Divulgação)


Em vida, a psiquiatra nunca defendeu explicitamente a bandeira dos Direitos Humanos ou se articulou em torno de um grupo da antipsiquiatria, ao contrário do que ocorreu em países europeus, por exemplo. Diante dessa pouca preocupação em nomear sua atividade ou criar um movimento em torno do seu trabalho, Magaldi propõe chamar a atividade de Nise de “psiquiatria rebelde”, em menção a seus próprios termos. E é a partir da atuação de Nise, principalmente pela sua figura e menos por suas ideias, que ainda circulam pouco, de acordo com o pesquisador, que ela influenciou a reforma psiquiátrica realizada no Brasil na década de 1990 que alia preocupação com Direitos Humanos e humanização do tratamento.

Ao destacar que o trabalho de Nise já é bastante reconhecido nos círculos ligados às artes, Magaldi procura compreender o pouco reconhecimento do trabalho da psiquiatra no âmbito acadêmico e dentro dos tratamentos preconizados pela Psiquiatria e pela Psicologia, chamando a atenção para a persistência do ideal de uma ciência positivista e de uma visão estritamente biomédica. “O prêmio Capes ajudou a dar visibilidade ao meu trabalho e me colocou em contato com inúmeros profissionais dessas áreas, com a perspectiva de ministrar cursos. Acredito que essa difusão irá ajudar na ativação da memória do trabalho realizado por ela e que possa estimular aqueles que trabalham com saúde mental”, diz o pesquisador. O antropólogo também lembra que, por outro lado, algumas áreas da Biologia e da Neurociência passaram a se aproximar dos ideais de Nise da Silveira, como nos estudos da plasticidade da mente e a contribuição de fatores ambientais para acionamento de genes. "Em todos os casos, trata-se de afirmar a possibilidade de transformação e de regeneração – ou seja, de cura – dos organismos vivos diante de suas condições concretas de existência, seja do ponto de vista físico ou psicológico", completa.





Autor: Juliana Passos
Fonte: FAPERJ
Sítio Online da Publicação: FAPERJ
Data: 26/09/2019
Publicação Original: http://www.faperj.br/?id=3844.2.0

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