terça-feira, 1 de outubro de 2019
Reflexões iniciais sobre psicologia das emergências e catástrofes
Desastres e catástrofes são eventos potencialmente desencadeadores de estresse, tanto em decorrência da exposição a um perigo iminente, quanto pelo risco à integridade física e emocional das pessoas envolvidas, requerendo assim ações imediatas, organizadas e executadas por uma equipe multidisciplinar.
Seja por um evento natural ou provocado por ação humana, os desastres apresentam-se como situações de calamidade, urgência que desencadeiam quebra da homeostase, do equilíbrio coletivo. Diferentemente de uma ocorrência isolada, acaba por ampliar suas proporções através dos canais midiáticos, podendo repercutir para além da localização atingida. Justamente por sua amplitude e física, social e comunitária, as ações que contemplam a atenção às vítimas de desastres, devem englobar os principais aspectos que compõem a existência humana: cuidados físicos, mentais, espirituais, sociais, justiça, igualdade, garantia de acesso a segurança e direitos básicos, amparo e pertencimento.
Os primeiros estudos da psicologia nas emergências e desastres surgiram no início do século XX, a partir de pesquisas realizadas pelo suíço Edward Stierlin em um de seus trabalhos publicados em 1909, que buscava compreender as emoções dos indivíduos acometidos por situações de desastres. Tal interesse foi desencadeado a partir da explosão de uma mina de carvão em 1906 na França. Estima-se que mais de mil mineiros não sobreviveram ao acidente, e as intervenções de apoio foram feitas com familiares e amigos das vítimas.
Pelo potencial de desestruturação reconhecido em situações de tragédias, em 1974, através do Instituto de Saúde Mental do Departamento de Saúde dos Estados Unidos, foi promulgada a primeira lei que regulou a atuação e ajuda em desastres, que previa a atuação dos psicólogos junto aos afetados. A lei determinou que toda pessoa que passasse por um evento de emergência e/ou desastre, recebesse acompanhamento psicológico por tempo indeterminado, até que lhe fosse possível dar continuidade a sua rotina, de modo independente, sem maiores danos (Benevides, 2015, p. 24).
Os primeiros estudos registrados, estão vinculados às guerras mundiais, sobretudo ao fenômeno conhecido como o “estresse pós-traumático, fadiga de batalha, neurose de guerra, flashbacks, e tantos outros termos utilizados para definir os acometimentos mentais decorrentes de traumas externos”. Muitos dos soldados que estavam em batalha acabavam desenvolvendo algum tipo de problema psicológico, porém os mesmos precisavam retornar para o campo de batalha, para lutar em dever do Estado […]. Pensando em uma possibilidade de apoio e reintegração das vítimas de guerra, a área começou a se desenvolver, ampliando inclusive o campo da pesquisa em saúde mental.
A psicologia passou a integrar sua abordagem profissional em tais contextos, pautando a atuação em um cenário adverso, sem setting indeterminado, lidando constantemente com a angústia e incerteza presentes no ambiente, manejando e mediando emoções dos diversos atores participantes – equipe, vítimas, familiares – buscando ainda manter sob controle as próprias emoções desencadeadas no processo.
Diferentemente da clínica, que tem sua prática bem delimitada, respaldada por uma abordagem teórica, tempo de atendimento, setting apropriado, demais aparatos necessários para o trabalho terapêutico de longo prazo, nas emergências e desastres, a experiência se amplia, abrindo-se aos recursos disponíveis naquele momento, e à demanda emergente, sem a certeza de haver continuidade. Seria ainda, errôneo comparar tal atuação, à própria prática hospitalar de urgência e emergência, na qual o psicólogo cumpre seu horário habitual de trabalho, conta com a estrutura física e humana presentes na instituição, tem os riscos de sua prática reduzidos em um cenário parcialmente controlado. Trata-se de uma condição totalmente atípica, na qual os profissionais adentram o cenário do caos, expondo-se a riscos semelhantes aos das vítimas atendidas, porém com uma consciência mais ampla sobre seu papel, suas possibilidades, e os limites mínimos de manutenção de sua segurança.
Psicologia das emergências e catástrofes
Segundo a Sociedade Chilena de Psicologia das Emergências e Desastres, a atuação do psicólogo poderá ser feita em três fases: no pré-desastre, durante o desastre e no pós-desastre. É por meio da percepção dos comportamentos dos indivíduos em todas as etapas do desastre que as intervenções da Psicologia devem ser desenvolvidas. Durante estas fases o psicólogo poderá analisar os indivíduos conforme suas particularidades para que assim utilize intervenções necessárias, visando a minimização do sofrimento.
Abordagem pré-desastre:
No pré-desastre as intervenções são direcionadas a prevenção e a minimização dos possíveis prejuízos futuros, por meio da “educação preventiva, treinamento realístico com exercício e prática, e/ou treinamento de inoculação de estresse”. Conhecendo a comunidade, seu modo de funcionamento e os riscos principais, é possível realizar o recrutamento de pessoas para compor os grupos de primeiras respostas, frente a emergências de pequeno, médio e grande portes.
O foco nesta etapa é conscientizar, empoderar e capacitar à prevenção, fazendo com que a população esteja pronta para a ação em eventos que necessitem de medidas extremas, sendo o psicólogo um importante facilitador. Aqui, a capacitação poderá ser realizada por meio de exposições graduais com filmes ou simulações com o intuito de preparar a parte emocional, cognitiva e comportamental daqueles que estão propensos às situações traumáticas com alto potencial de impacto. É interessante pontuar que as intervenções e técnicas utilizadas para a prevenção em desastres não param apenas nesta primeira fase, mas são intervenções contínuas, pois sempre acontecerão novos eventos em áreas e comunidades de risco.
Abordagem durante:
A abordagem mais conhecida atualmente, é a atuação durante as catástrofes. No Brasil, pouco se trabalha com a abordagem preventiva e educativa, direcionando portanto esforços, já após instalada a crise. Em tais situações, o primeiro contato é feito pela avaliação das necessidades e preocupações manifestas pelas pessoas envolvidas, propondo um ambiente seguro, sem distinção de idade ou local para ser posta em prática.
Atuação direta: O psicólogo poderá atuar diretamente no atendimento com as vítimas e seus familiares, identificando demandas por meio de uma escuta cuidadosa e avaliação interdisciplinar de prioridades. Neste caso, acaba sendo o mediador de informações importante para o auxílio das pessoas que necessitam, tanto no suporte psicoemocional, quanto permeando questões sociais (realocação, instalação, cuidados básicos, segurança, mobilização de grupos). As intervenções podem ser feitas individualmente ou em grupos, oportunizando a troca de experiências e apoio mútuo, possíveis em situações de ‘luto’ coletivo.
Atuação indireta: Poderá participará na capacitação, no preparo psicológico e suporte das equipes que trabalham diretamente com as vítimas, auxiliando-os no reconhecimento de suas próprias limitações físicas e emocionais durante o resgate e no atendimento às vítimas (MELO; SANTOS, 2011).
Intervenções no pós-desastre:
Aqui, o ponto principal é o acompanhamento da comunidade afetada, auxiliando no processo de reconstrução da imagem social, retomada de atividades, suporte emocional em perdas e luto, identificação e acompanhamento de alterações cognitivas e emocionais secundárias à exposição ao trauma, dentre outras funções singulares a cada ocorrência.
Falar na abordagem psicológica frente a desastres, envolve trabalhar com o incerto, com a angústia, com os sentimentos em seu ápice, intensificados pelo poder de grupo, com os riscos iminentes (à vítima e aos profissionais).
Trata-se de sair do seu cenário para adentrar no caos, buscando organizá-lo, respeitando a cultura, as crenças e a organização social/política daquela comunidade. Diferente de um cenário institucional, que traz a representação de pertencimento, segurança e centralização do cuidado, na situação de emergência social, os profissionais atuantes sairão de sua zona de segurança para se tornarem “profissionais participantes” da catástrofe. Por vezes, antes mesmo que a situação e os riscos estejam minimamente controlados.
Ingressar nesta área, envolve capacidade de autocontrole emocional, capacidade de atenção direcionada e ampliada, capacidade de adaptação, trabalhar em situações de alto risco e pressão social, emocional, física e midiática. É necessário dominar teorias que envolvem psicologia social, psicologia da saúde, políticas sociais, capacidade dinâmica, habilidades interpessoais para articular atividades conjuntas com profissionais de outras áreas. Trata-se de um campo novo, porém com grande possibilidade de ampliação, e que já possui raízes bem fundamentadas e objetivos bem estruturados de intervenção profissional.
Autor: Mariana Batista Leite Leles
Fonte: pebmed
Sítio Online da Publicação: pebmed
Data: 01/10/2019
Publicação Original: https://pebmed.com.br/reflexoes-iniciais-sobre-psicologia-das-emergencias-e-catastrofes/
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