Colheitas separadas dentro de um mesmo talhão já proporcionaram vinhos experimentais distintos entre si nas duas vinícolas. Isso porque, a depender das condições do solo e das plantas, as uvas podem ter mais ou menos açúcares, ácidos ou compostos fenólicos. E mesmo a graduação alcoólica do vinho resultante pode variar.
O estudo abre caminho para a criação de produtos diferenciados, com maior valor agregado e características desejáveis, sem que seja necessário abrir novas áreas de plantio. Permite ainda uma melhor gestão da água e de fertilizantes.
O projeto ajuda também a impulsionar os chamados vinhos de inverno, que estão ganhando mercado na última década e são produzidos em regiões onde historicamente não eram fabricadas essas bebidas finas, como São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Mato Grosso e Tocantins.
Com a técnica da dupla poda, desenvolvida pela Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), em vez de colher as uvas no fim do verão (entre janeiro e março), quando há mais chuva e doenças, os produtores fazem a colheita entre junho e agosto. Nesse período, há menos pluviosidade e uma maior amplitude térmica, com dias quentes e noites frias. Ideal para as uvas viníferas.
“Usamos diversas medidas para avaliar a variabilidade que os vinhedos apresentam de forma natural para que, a partir disso, o enólogo possa tirar vantagens de alguma característica em particular do vinho produzido a partir de determinada parte do vinhedo. É o que chamamos de vitivinicultura de precisão”, explica Luís Henrique Bassoi, pesquisador da Embrapa Instrumentação, em São Carlos, e coordenador do projeto.
Além das duas vinícolas paulistas, são parceiros do projeto a Epamig, unidade Uva e Vinho, em Caldas (MG), que desenvolveu a técnica da dupla poda no início dos anos 2000, e a Faculdade de Ciências Agronômicas da Universidade Estadual Paulista (FCA-Unesp), em Botucatu, onde Bassoi é professor do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Agrícola.
“No manejo tradicional, a elevada pluviosidade pode obrigar a uma colheita precoce no verão, sem que as uvas completem todo o seu processo de maturação. Com a dupla poda, deslocamos o período de maturação para o outono e inverno, quando temos na região Sudeste a condição de baixa umidade atmosférica e elevada amplitude térmica, que permite o avanço da maturação”, explana Renata Vieira da Mota, coordenadora do Programa Estadual de Pesquisa em Vitivinicultura da Epamig e pesquisadora associada do projeto.
Segundo Mota, as baixas temperaturas noturnas contribuem para o equilíbrio no teor de ácidos e a formação dos compostos fenólicos, responsáveis pela cor e estrutura do vinho. “Dessa forma, conseguimos extrair todo o potencial qualitativo da uva no processo de elaboração do vinho de inverno”, completa.
Diferenças na taça
Na Casa Verrone, propriedade de 35 hectares há 40 anos na família, o vitivinicultor Márcio Verrone cultiva 15 hectares de uvas viníferas e para suco desde 2008. Com o projeto iniciado em 2019, desde 2021 apoiado pela FAPESP, as perspectivas são as melhores possíveis.
“Dentro de uma mesma área foi possível dividir uma parte de alta qualidade e outra com menos. Podemos, por exemplo, usar as uvas da primeira para produzir um vinho especial, até mesmo com um selo de agricultura de precisão ou algo do tipo. Esse vinho pode ainda ser usado num corte [mistura], de forma a elevar o padrão do vinho da outra área. As possibilidades são muitas”, projeta Verrone.
Ricardo Baldo, diretor da Vinícola Terras Altas, em Ribeirão Preto, afirma que já usa o vinho das melhores áreas para cortes com os das outras. Em breve, com o mapeamento de toda a propriedade, espera criar produtos exclusivos, a partir dos frutos dos melhores talhões da vinícola.
“Graças à vitivinicultura de precisão, também podemos gerir melhor o uso da água e de fertilizantes. Sabemos quais áreas precisam de mais, menos ou mesmo nenhum desses recursos, fazendo um uso inteligente deles”, relata.
Na Casa Verrone, as duas partes da mesma área da variedade Syrah, de cerca de 1,1 hectare, foram identificadas a partir do cruzamento de informações sobre umidade e condutividade elétrica aparente do solo, além de medidas nas plantas como porometria (que indica o quanto as folhas estão transpirando), teor de clorofila e índices vegetativos (medidos por sensores carregados pelos próprios pesquisadores, embarcados em um drone ou mesmo em um satélite).
Com os resultados, a área foi dividida entre a que proporcionava um alto e um baixo vigor vegetativo, que é o quanto a planta produz de biomassa, entre outras características bioquímicas.
A enóloga Isabella Magalhães, da Casa Verrone, apresentou à reportagem da Agência FAPESP os dois vinhos experimentais obtidos das áreas de alto e de baixo vigor vegetativo. A chamada microvinificação, numa escala menor do que a industrial, foi feita no Núcleo Tecnológico Uva e Vinho da Epamig, em Caldas (MG).
“Ambos têm uma cor rubi, porém, mais delicada no vinho da área de alto vigor vegetativo e mais intenso no de baixo vigor. Enquanto no primeiro consigo sentir no nariz frutas frescas, podendo levar esse vinho para envelhecer em barrica, no outro tenho um vinho para ser tomado mais jovem, em todo o seu vigor”, compara Magalhães, enquanto degusta os dois produtos.
O projeto conta com os doutorandos Larissa Farinassi e Anderson Pereira, da FCA-Unesp, e os estagiários Victor Nogueira, Gabriel Ferreira, Victor Gambardella e Augusto Sorrigotti, graduandos em engenharia agronômica no Centro Universitário Central Paulista (Unicep), em São Carlos.
Para Bassoi, além da capacitação de mão de obra, o projeto traz inovação ao setor, levando a agricultura de precisão, bastante presente em culturas como café, soja e cana-de-açúcar, para a viticultura, em que ainda é incipiente no Brasil.
“Nossa ideia é trazer um novo parâmetro para os produtores poderem alavancar seus produtos no mercado, que ainda tem muito preconceito com os vinhos nacionais. Temos produtos de alta qualidade”, encerra o pesquisador.
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