“Diferentemente das pragas da idade das trevas ou das doenças contemporâneas
que ainda não compreendemos, a praga moderna da superpopulação é solúvel
pelos meios que descobrimos e com os recursos que possuímos.
O que falta não é conhecimento suficiente da solução, mas consciência universal
da gravidade do problema e educação dos bilhões que são suas vítimas”
Martin Luther King (1966)
Parece que foi ontem, mas 1968 – “o ano que não terminou” – completa 50 anos. O ano de 1968 foi excepcional em vários aspectos e foi marcado por atos revolucionários e contrarrevolucionários, por esperanças e desesperanças e por defesas intransigentes do Neomalthusianismo e do Antineomalthusianismo.
Em 05/01, acontece o início da Primavera de Praga, na Tchecoslováquia. Em 30/01, os Vietcongues lançam a “Ofensiva Tet”. Em 05/02, as universidades de vários países do mundo são ocupadas por estudantes, incluindo grandes manifestações contra a guerra do Vietnã. Em 28/03, morre no Rio de Janeiro o estudante Edson Luís durante o choque da Policia Militar e estudantes do Restaurante Calabouço. Em 04/04, Martin Luther King é assassinado em Memphis, Tennessee. Em 11/04, o presidente americano, Lyndon Johnson, assina a lei sobre os direitos civis. No dia 29/04 foi lançado o filme “2001 – Uma Odisseia no Espaço”. Em 02/05, início do “Maio de 1968” e no dia seguinte a Universidade de Paris (Sorbonne) é fechada pelas autoridades francesas. Em 30/05, o presidente De Gaulle recusa-se a renunciar e lança sua contraofensiva, dissolvendo a Assembleia Nacional e convocando eleições para o mês de junho. Em 26/06, é realizada a Passeata dos Cem Mil no Rio de Janeiro. Em 21/08, fim Primavera de Praga, quando tropas soviéticas e outros países do Pacto de Varsóvia invadem a cidade de Praga. Em 02/10, Massacre de Tlateloco, o exército matou 48 pessoas durante manifestação estudantil no México. Em 03/10, o general peruano Juan Velasco Alvarado dirige um golpe de estado. Em 15/10, prisão de líderes estudantis no 30º Congresso da UNE, em Ibiúna. Em 13/12, o Presidente General Costa e Silva decreta o AI-5.
No campo da discussão sobre população e desenvolvimento, 1968 foi marcado pela publicação de duas obras antagônicas, que polarizaram as discussões nas décadas seguintes e que merecem ser avaliadas 50 anos depois: o livro “Bomba populacional” (maio de 1968), de Paul Ehrlich e a encíclica “Humanae Vitae” (25/07/1968), do Papa Paulo VI.
Do ponto de vista da dinâmica demográfica, a década de 1960 foi marcada pelo fortalecimento do Neomalthusianismo vindo dos países do Norte preocupados com o alto crescimento das populações do “Sul econômico”. Em 1965, o presidente dos EUA, Lyndon Johnson disse a famosa frase que sintetizou o pensamento controlista: “Less than five dollars invested in population control is worth a hundred dollars invested in economic growth” (Mais valem 5 dólares investidos no controle da população do que 100 dólares investidos em desenvolvimento).
O gráfico abaixo mostra que a população mundial passou de 800 milhões de habitantes, por volta de 1775, chegou a 4 bilhões em 1975 e deve atingir 8 bilhões de habitantes em 2025. Um aumento de 5 vezes em 200 anos e de 10 vezes em 250 anos. Evidentemente, é um crescimento muito significativo. O pico do crescimento populacional global ocorreu exatamente na década de 1960, quando atingiu 2,1% ao ano. A esta taxa, a população se multiplica por 8 vezes em 100 anos e por 64 vezes em 200 anos. Ou seja, se a taxa de crescimento se mantivesse em torno de 2,1% ao ano, a população mundial chegaria a mais de 200 bilhões de habitantes em 2168.
Foi com estas contas simples na cabeça que Paul Ehrlich lançou o livro “Bomba Populacional”, em maio de 1968. Ehrlich era um biólogo norte-americano especializado em estudos de borboleta, tendo publicado vários livros sobre o assunto. Ele era um lepidopterologista e não um demógrafo. Se ele usasse o referencial teórico da transição demográfica – que já era bastante conhecido nesta época – saberia que a tendência seria a redução das taxas de fecundidade após um certo período posterior à queda das taxas de mortalidade.
O título do livro (que foi dado pelo editor e não pelo autor) já mostrava o caráter sensacionalista da obra, ao tratar a população como uma coisa bombástica e explosiva. Logo no prólogo do livro aparece a previsão apocalíptica: “A batalha para alimentar toda a humanidade acabou. Na década de 1970, o mundo passará fome – centenas de milhões de pessoas vão morrer de fome…” (p. 13).
O livro de Paul Ehrlich está repleto de erros e exageros. Mas a mensagem da obra é relativamente simples e não pode ser considerada equivocada. O autor propõe o “Crescimento populacional zero” (Zero Population Growth – ZPG) para que o mundo pudesse evitar o contínuo crescimento populacional permitindo um maior equilíbrio entre as atividades antrópicas e o meio ambiente. Para tanto os casais deveriam limitar a fecundidade a dois filhos, para alcançar uma sustentabilidade ambiental de longo prazo.
Esta proposta foi considerada de direita e imperialista. Na Conferência Mundial de População ocorrida em Bucareste, em 1974, os países desenvolvimentistas do Terceiro Mundo se contrapuseram à proposta do ZPG de Ehrlich e lançaram a palavra de ordem: “O desenvolvimento é o melhor contraceptivo”.
Mas, curiosamente, a China comunista percebeu que seria impossível garantir o desenvolvimento e a redução da fome para sua imensa população devido ao alto crescimento demográfico e lançou, em 1979, a orientação neomalthusiana mais draconiana da história – a política do filho único. Ou seja, enquanto Paul Ehrlich defendia a adoção de um padrão de dois filhos por casal, a China dobrou a aposta e adotou uma política autoritária e intransigente de apenas um filho por casal (1/2 ZPG).
Mas o maior ataque às propostas neomalthusianas veio com o lançamento da encíclica Humanae Vitae (“Da vida humana”), lançada pelo Papa Paulo VI, no dia 25/07/1968. A encíclica, que tem como subtítulo a expressão “Sobre a regulação da natalidade”, se posiciona contra todos os métodos modernos de regulação da fecundidade, contra os meios que possibilitam o sexo seguro, condena a masturbação e define a sexualidade com um ato heterossexual com a finalidade única do “desejo divino” da procriação. Adotando a visão agostiniana do sexo como o pecado responsável pela “queda” de Adão e Eva do Paraíso, a encíclica Humanae Vitae reforça a repressão ao desejo carnal e só admite a sexualidade em função dos objetivos generativos. Ou seja, a encíclica de Paulo VI é contrária à liberdade sexual e a favor do pronatalismo.
O jornalista Robert McClory, no livro “Turning Point: The Inside Story of the Papal Birth Control Commission, and how Humanae Vitae Changed the Life of Patty Crowley and the Future of the Church” (1995), mostra que a encíclica foi fruto de uma “manobra conservadora”. Uma “Comissão Papal do controle da natalidade” (com cerca de 70 membros), criada por iniciativa do Concílio Vaticano II, após longo debate, concluiu que a contracepção artificial deveria ser considerada moralmente aceitável para os casais. No final dos trabalhos, após uma votação por 52 votos a 4, encaminhou um relatório com a posição da maioria para o Papa Paulo VI recomendando a aceitação dos métodos contraceptivos artificiais. Porém, o pequeno número de membros da Comissão que se opunha a essa mudança, em conjunto com funcionários conservadores do Vaticano, construiu um relatório minoritário contra as mudanças no dogma da Igreja sobre contracepção. Este relatório minoritário constituiu a base da encíclica Humanae Vitae.
Ou seja, a encíclica do Papa Paulo VI não representou o pensamento da maioria das autoridades que foram encarregadas pelo Concílio Vaticano II, na época do Papa João XXIII, para analisar a questão da reprodução humana. E o pior, criou um fosso em relação ao conjunto da população católica do mundo que ficou “amarrada a dogmas medievais”, exatamente no momento em que as taxas de crescimento demográfico eram as maiores da história humana, o mundo passava por uma revolução sexual e comportamental, se expandia a diversidade dos arranjos familiares, aumentava o número de separações e divórcio e era cada vez maior o número de nascimentos fora do casamento. Contudo, a maioria dos católicos são favoráveis ao uso de métodos contraceptivos modernos. O Papa Francisco formou uma comissão para reavaliar a encíclica Humanae Vitae 50 anos depois do seu lançamento. Veremos em breve o que vai surgir.
Felizmente, os equívocos do livro “Bomba Populacional” e da encíclica “Humanae Vitae” ficaram bastante evidentes ao longo dos anos. A transição demográfica se aprofundou nos anos 1970 e o crescimento demográfico global caiu de 2,1% na década de 1960 para menos de 1% na atual década, devendo zerar até o final do século. Na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada na cidade do Cairo, em 1994, foram definidos com bandeira os “direitos sexuais e reprodutivos”. A Constituição Brasileira, de 1988, em seu artigo 226, § 7º, define que “O planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.
50 anos após a publicação do livro “Bomba populacional”, de Paul Ehrlich, e da encíclica “Humanae Vitae”, do Papa Paulo VI, a questão populacional já não tem mais o caráter alarmante da década de 1960, mas a sustentabilidade ambiental está cada vez mais ameaçada e o mundo caminha para a 6ª extinção em massa das espécies.
Estudo do Stockholm Resilience Centre, publicado na Revista Science (janeiro de 2015), mostra que quatro das nove fronteiras planetárias, definidas no estudo, foram ultrapassadas: Mudanças climáticas; Perda da integridade da biosfera; Mudança no uso da terra; Fluxos biogeoquímicos (fósforo e nitrogênio). Duas delas, a Mudança climática e a Integridade da biosfera, são o que os cientistas chamam de “limites fundamentais” e tem o potencial para conduzir o Sistema Terra a um estado catastrófico. O agravamento destas duas fronteiras fundamentais podem levar a civilização ao colapso.
Sem ECOlogia não há ECOnomia. Assim, não dá para a humanidade continuar se enriquecendo às custas do empobrecimento dos ecossistemas. É urgentemente necessário superar os sectarismos, o antropocentrismo e os dogmas preconceituosos para promover o decrescimento demoeconômico, como forma de adequar a Pegada Ecológica aos limites da Biocapacidade do Planeta.
Referências:
ALVES, JED. CAVENAGHI, S. Igreja Católica, Direitos Reprodutivos e Direitos Ambientais, Horizonte, Belo Horizonte, v. 15, n. 47, p. 736-769, jul./set. 2017
http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2017v15n47p736
ALVES, J. E. D., Corrêa, Sonia. Demografia e ideologia: trajetos históricos e os desafios do Cairo + 10. Revista Brasileira de Estudos da População. v.20, n.2, p.129 – 156, 2003.
https://www.rebep.org.br/revista/article/view/290
MARTINE, G., ALVES, J. E. D. Economia, sociedade e meio ambiente no século 21: tripé ou trilema da sustentabilidade? Revista Brasileira de Estudos de População. v.3, p.1-31, 2015 http://www.scielo.br/pdf/rbepop/v32n3/0102-3098-rbepop-S0102-3098201500000027P.pdf
ALVES, JED. Emma Goldman e a luta pela autodeterminação reprodutiva, Ecodebate, 15/02/17
https://www.ecodebate.com.br/2017/02/15/emma-goldman-e-luta-pela-autodeterminacao-reprodutiva-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
EHRLICH, Paul. The population bomb, Ballantine Books, New York, May 1968
http://projectavalon.net/The_Population_Bomb_Paul_Ehrlich.pdf
PAULO VI. HUMANAE VITAE, Carta Encíclica de Sua Santidade o Papa Paulo Vi sobre a Regulação da Natalidade
http://w2.vatican.va/content/paul-vi/it/encyclicals/documents/hf_p-vi_enc_25071968_humanae-vitae.html
Population Media Center. Martin Luther King, Jr. Discusses Family Planning and Population, January 15, 2018
https://www.populationmedia.org/2018/01/15/martin-luther-king/
McCLORY, Robert. Turning Point: The Inside Story of the Papal Birth Control Commission, and how Humanae Vitae Changed the Life of Patty Crowley and the Future of the Church. New York: The Crossroad Publishing Company, 1995
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 04/04/2018
Autor: José Eustáquio Diniz Alves
Fonte: EcoDebate
Sítio Online da Publicação: EcoDebate
Data de Publicação: 04/04/2018
Publicação Original: https://www.ecodebate.com.br/2018/04/04/neomalthusianismo-e-antineomalthusianismo-bomba-populacional-versus-humanae-vitae-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
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