terça-feira, 26 de abril de 2022

Após 113 anos, Doença de Chagas ainda é motivo de preocupação

Nesta quinta-feira, dia 14 de abril, é comemorado o Dia Mundial da Doença de Chagas, instituído em 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para aumentar a conscientização sobre a doença. Mas após 113 anos de sua descoberta pelo médico, sanitarista e infectologista Carlos Chagas, pouco há para comemorar. Considerada uma doença negligenciada, causada por um protozoário parasita e endêmica em 21 países da América do Sul, afetando em especial as populações de baixa renda, a doença de Chagas ainda carece de investimentos em pesquisa e foco das indústrias farmacêuticas, para o seu controle e a produção de medicamentos.

A boa notícia é que está para ser implementado o projeto “Integra Chagas Brasil”, uma parceria da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Ministério da Saúde, que propiciará o acesso à detecção e tratamento da doença de Chagas no âmbito da atenção primária à saúde no Brasil. Nesse contexto, serão aplicadas diferentes estratégias de diagnóstico, incluindo o uso da biologia molecular para detectar a forma congênita da doença, a fim de monitorar o tratamento das mães infectadas e seus bebês. O projeto, que prevê a validação do primeiro kit de diagnóstico molecular da doença, produzido com insumos 100% nacionais, abrangerá seis municípios representativos das macrorregiões endêmicas brasileiras nos estados de Goiás, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e Pará.

Causada pelo protozoário parasita Trypanosoma cruzi, que é transmitido pelas fezes de insetos do gênero Triatoma, popularmente conhecido como barbeiro, a enfermidade ainda atinge milhões de brasileiros. Apesar de não haver dados sistemáticos relativos à prevalência da doença, em estudos recentes publicados no II Consenso Brasileiro em Doença de Chagas, em 2015, as estimativas de prevalência variaram de 1,0 a 2,4% da população, o equivalente a 1,9 a 4,6 milhões de pessoas infectadas por T. cruzi. A OMS estima entre 6 a 7 milhões o número de pessoas infectadas em todo o mundo, a maioria na América Latina.

De acordo com a chefe do Laboratório de Biologia Molecular e Doenças Endêmicas do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Constança Felicia De Paoli de Carvalho Britto, uma das pioneiras no diagnóstico molecular da infecção, por muito tempo a doença ficou restrita à América Latina, mas, progressivamente, a partir dos anos 2000, avançou para outros continentes, devido, principalmente, à mobilidade de pessoas infectadas, como resultado do intenso processo de migração internacional. Com uma vida inteira dedicada ao estudo da enfermidade, a bióloga, em parceria com outros pesquisadores, participa de ensaios clínicos nacionais e internacionais.

“Ainda hoje a doença de Chagas é uma preocupação, pois está entre as quatro principais causas de mortalidade entre as doenças infecciosas e parasitárias, dentre as quais também figuram malária, leishmaniose e esquistossomose”, explica Constança. Segundo ela, mais de 80% dos infectados não têm acesso ao diagnóstico e, por estarem assintomáticos, também não procuram tratamento. E quando o assunto é tratamento há outro gargalo, pois o único medicamento disponível no País foi desenvolvido na década de 1970. Tal droga se mostra muito eficaz na fase aguda da doença, mas não na fase crônica tardia, que é a realidade da maioria dos doentes, infectada há muitos anos, quando é observado um percentual de cura de aproximadamente 20% dos casos tratados.

A pesquisadora, que conta com bolsa do programa Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ para a condução de seus estudos, explica que é comum o paciente abandonar o tratamento, que chega a durar noventa dias, devido aos graves efeitos colaterais da droga. Sem tratamento precoce, muitos desenvolvem lesões no coração e insuficiência cardíaca. De acordo com a pesquisadora, entre a população infectada no Brasil, cerca de 70% dos casos são assintomáticos e 30% sintomáticos, principalmente com lesões no coração em vários estágios de gravidade. Além disso, dois fatores podem agravar ainda mais a doença cardíaca: a persistência do parasita e a exacerbação de resposta imune inflamatória no sítio da lesão, além do status de imunossupressão de pacientes transplantados e coinfectados T. cruzi/HIV. Mas, segundo Constança, em todos os casos é recomendado o tratamento, com exceção daqueles pacientes com a forma mais severa da doença cardíaca.
 

A imagem reproduz o ciclo de vida do barbeiro, cujas fezes transmitem o protozoário parasita Trypanosoma cruzi (Ilustração: Fiocruz)

A transmissão pelo Trypanosoma cruzi pelas fezes do barbeiro após uma picada já não é mais tão comum. A pesquisadora diz que a transmissão vertical, ou infecção congênita, passada da mãe para o filho, é a que predomina hoje, nos países não endêmicos. Outra possibilidade de transmissão é a decorrente do transplante de órgãos de pessoas infectadas. Casos de reativação do protozoário ocorreram recentemente na Argentina, revela a bióloga. Bastante oportunista, o Trypanosoma cruzi também se aproveita dos imunossuprimidos, como os pacientes com HIV.

Por outro lado, a ocorrência de casos e surtos por transmissão oral, principalmente na Amazônia Legal, vem ganhando importância epidemiológica no Brasil. A transmissão oral acendeu a luz de alerta para este tipo de infecção aguda, decorrente do consumo de alimentos infectados. Assimilado mais rapidamente, caindo diretamente no trato digestivo, o protozoário provoca sintomas mais graves e difíceis de serem associados à doença quando esta é resultante da via clássica de transmissão do parasita. O açaí, fruto típico do Pará e outros estados da região Norte, que virou uma febre de consumo em todo o País, foi um dos primeiros a ser identificado com a presença do Trypanosoma cruzi . Paralelamente, pesquisadores encontraram o DNA do protozoário não viável, no açaí processado, vendido nos supermercados de grandes capitais. Pesquisadores alertaram os produtores quanto à necessidade de cuidados durante coleta, transporte e armazenamento do fruto. “Não havia quadros fatais na Amazônia, mas hoje eles são relevantes”, esclarece Constança. Ela relembra ainda que em 2005 houve a identificação do Trypanosoma cruzi na cana-de-açúcar utilizada para fazer caldo, que contaminou e levou a óbito turistas em Florianópolis. Um caso mais recente de infecção oral ocorreu durante um encontro de um grupo de religiosos em Pernambuco, com pessoas infectadas após o almoço comunitário.

A bióloga diz que o controle do vetor, iniciado em 1983, foi bastante efetivo na redução da transmissão do parasita pela espécie de triatomíneo de maior importância epidemiológica no País. Posteriormente, entre as décadas de 1991 e 2000, outros países do Cone Sul também se engajaram na campanha para reduzir o Triatoma infestans. Entretanto, há ainda outras 151 espécies de triatomíneos, das quais 65 com potencialidade para transmitir o parasito, que atualmente começam a ocupar os nichos da população primária especialmente nas áreas rurais próximas às florestas, esclarece Constança. “O Trypanosoma cruzi tem uma variedade genética enorme e hoje as pesquisas vêm tentando descobrir a relação entre as diferentes linhagens genéticas do parasita e as diferentes formas clínicas da doença”, conta a pesquisadora.


A doença de Chagas ainda está entre as quatro principais causas de mortalidade entre as doenças infecciosas e parasitárias, esclarece Constança Britto

Desde o doutorado, em 1995, Constança vem estudando um teste de PCR (“polymerase chain reaction” ou reação em cadeia da polimerase) para identificação da infecção pelo T. cruzi, especialmente no paciente crônico, quando a parasitemia é escassa e intermitente e o diagnóstico, nessa fase, é essencialmente pela detecção de anticorpos contra o parasita. Devido às limitações do teste de sorologia, a OMS recomenda que sejam realizados ao menos dois testes sorológicos com princípios distintos, e no caso de resultados conflitantes ou inconclusivos, o teste PCR pode ser aplicado em laboratórios de referência, como ferramenta diagnóstica complementar. Além do papel relevante do uso da PCR durante o monitoramento de tratamento, quando um resultado de PCR é positivo, sinaliza falha terapêutica.

Não menos importante, o subprojeto de Constança é o desenvolvimento do primeiro kit de diagnóstico molecular do Brasil, em parceria com o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos) da Fiocruz e do Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP). O Kit NAT (Nucleic Acid Test) Chagas, que já passou pela Prova de Conceito e demais testes necessários, teve seu pedido de registro encaminhado à Anvisa em setembro de 2021. Há um mês, foi para o Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS) da Fiocruz para validação e posterior distribuição para o Sistema Único de Saúde (SUS). A pesquisadora destaca que o maior mérito do kit, que finalmente vai chegar até a população mais vulnerável, é o fato de usar insumos totalmente nacionais, fornecidos pelo IBMP, e obter resultados até melhores ou superiores ao uso de insumos importados. “Estou muito feliz porque dediquei toda a minha vida ao estudo da Doença de Chagas e de seu agente etiológico e agora vejo um resultado concreto que possa contribuir efetivamente para a saúde da população”, comemora a bióloga.





Autor: Paula Guatimosim
Fonte: faperj
Sítio Online da Publicação: faperj
Data: 19/04/2022
Publicação Original: https://www.faperj.br/?id=82.7.5

Nenhum comentário:

Postar um comentário