Entender a linguagem como ação para compreender performances sobre questões raciais a partir de discursos. Esse é o trabalho ao qual tem se dedicado a pesquisadora Glenda Cristina Valim de Melo, professora no Departamento de Processos Técnicos Documentais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Atenta aos debates que têm ganhado cada vez mais público dentro e fora das redes sociais, a pesquisadora agora se dedica a investigar os discursos de mulheres negras sobre solidão e violência obstétrica presentes em textos de blogs, vídeos e postagens em grupos de redes sociais. O projeto conta com apoio do programa Jovem Cientista no Nosso Estado da FAPERJ.
Como resultados iniciais da pesquisa, Glenda, que possui doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), conta que é possível identificar uma série de valores existentes na sociedade a partir dos discursos coletados. No caso da solidão, os textos analisados mostram uma falta de escuta não só em relacionamentos afetivos e sexuais – em que se identifica uma hipersexualização da mulher negra –, mas também nos locais de trabalho, nas amizades e mesmo nas discussões entre grupos feministas, especialmente, quando gênero e raça se articulam com escolaridade, sexualidade, classe etc. "Essa solidão perpassa várias etapas da vida da mulher negra. A partir dos dados que tenho analisado. Penso que se trata de uma solidão secular, que vem desde o período de colonização e de escravização e que ao longo dos séculos constrói essa mulher negra como uma mulher que não merece afeto", argumenta.
A pesquisadora também observa formas de subversão dessa solidão nos textos analisados, especialmente com a criação de grupos e coletivos para tratar de diversos aspectos das vidas de mulheres negras como garantia de serem escutadas. Entre os estudos nos quais tem se apoiado, a pesquisadora cita os trabalhos de Claudete Alves Souza, em pesquisa desenvolvida na PUC-SP, e Ana Claudia Lemos Pacheco, professora na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), que têm pontuado que essa solidão começa na infância.
Enquanto os depoimentos sobre a solidão cotidiana foram facilmente encontrados pelas redes, Glenda relata que o mesmo não ocorreu quando o tema é a violência sofrida no momento do parto, ainda que o número de relatos sobre esse tipo de violência por parte de mulheres brancas seja bastante recorrente. Para a pesquisadora, esse dado reflete, em parte, a naturalização da violência contra essas mulheres. O Atlas da Violência de 2020, produzido pelo Fórum de Segurança Pública, traz dados de 2018 e informa que a população preta e parda representa 75,7% das vítimas de homicídios no País. Na divisão por gênero, 68% do total de mulheres assassinadas no Brasil é negra.
Glenda Melo: para a pesquisadora, as pessoas podem encenar variadas perfomances, indo contra a ideia
de uma essência identitária (Foto: Arquivo pessoal)
A saída foi o ingresso em um grupo de WhatsApp criado para debater estas questões e solicitar individualmente a autorização de análise dos relatos. Outra fonte de pesquisa é o documentário “A Dor Reprimida: violência obstétrica e mulheres negras”, que traz depoimentos impactantes, de acordo com Glenda, assim como os comentários que foram feitos na sequência da postagem. "As crenças e os valores que mais aparecem nesses relatos são os de que mulheres negras são mais fortes, o que tornaria a anestesia desnecessária; que têm mais filhos do que deveriam ter. Então, enquanto elas entram no processo de parto, escutam que são promíscuas; que elas devem ter muitos filhos; e que mais um filho será um problema para a sociedade. E são mulheres que passam por esses processos sozinhas. E aí percebemos que se intercala a violência obstétrica com a solidão", diz. A pesquisadora entende que o silenciamento sobre essas questões e o fato de elas não contestarem o que está acontecendo se deve à preocupação de que algo possa ocorrer com seus filhos. "Eu entendo esse silêncio como um processo de resistência", avalia.
Para a interpretação dos discursos, a pesquisadora utiliza a perspectiva das teorias queer, utilizada em sua maioria para discutir gênero e sexualidade, e que tem sua aplicação para pensar a questão racial cada vez mais defendida. "Um dos aspectos positivos dessas teorias é o entendimento de que as pessoas, não só negras, podem encenar diversas performances. Algo que vai contra uma ideia de essência identitária e permite balançar normas de existência", diz. O trabalho também parte da perspectiva da linguística aplicada transgressiva, em que a linguagem é entendida como um vetor de transformação social, ainda que seus estudos estejam sempre em interlocução com outros campos das ciências humanas e sociais, como forma de compreender determinado fenômeno social.
Autor: Juliana Passos
Fonte: FAPERJ
Sítio Online da Publicação: FAPERJ
Data: 07/05/2021
Publicação Original: http://www.faperj.br/?id=4211.2.9
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