O relatório sublinha que as atuais regras comerciais, políticas econômicas, encargos da dívida, subsídios e formas de evasão fiscal, bem como o persistente incumprimento dos compromissos de financiamento pelos países ricos, não só prejudicam os esforços pela conservação da biodiversidade, como estão entre os principais fatores que provocam os danos ecológicos.
O estudo, conduzido por investigadores da Universidade de Lancaster, da Universidade da Colúmbia Britânica e da Universidade Duke, demonstra o incumprimento dos compromissos relacionados à Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), um importante tratado multilateral assinado com o objetivo de conservar a biodiversidade, utilizá-la de forma sustentável e partilhar equitativamente os seus benefícios.
Os investigadores consideram que a abordagem global para a definição das políticas ligadas à biodiversidade é inadequada — as discussões giram em torno das maneiras de trazer a natureza para dentro das regras existentes do jogo econômico, em vez de examinar a forma como essas regras criam o problema em primeiro lugar.
O relatório também destaca que os investimentos em projetos de melhoria da natureza fazem pouco para conter o agravamento da crise da biodiversidade — porque os fatores econômicos que impulsionam a crise continuam a ser ignorados.
Os autores advertem que, embora o aumento do financiamento para ações ligadas à biodiversidade seja bem-vindo, os seguintes fatores econômicos têm de ser abordados para que tais ações sejam eficazes:
As normas existentes para regular o comércio e o investimento, cujo efeito é estimular um modelo de desenvolvimento que degrada a biodiversidade
Um crescimento exponencial no financiamento público e privado das indústrias nocivas à biodiversidade
Os encargos da dívida nos países em desenvolvimento, que esgotam as finanças públicas e tornam impossível, para muitas nações, o investimento na conservação e utilização sustentável
As desigualdades enraizadas ao nível internacional e nacional, para as quais o desenvolvimento econômico nocivo à biodiversidade é apresentado como a única solução
Subsídios públicos para atividades que prejudicam a biodiversidade, cujo volume excede largamente o investimento internacional em iniciativas para a sua preservação
Evasão fiscal pelas elites ricas e as grandes empresas, que drenam ainda mais os cofres públicos
Os investigadores mostram que os países mais ricos não estão cumprindo suas obrigações de financiamento previstas na CDB. Em vez disso, nos quase 30 anos desde o nascimento da CDB em 1992, os signatários do mundo rico só pagaram cerca da metade (58%) do que prometeram, enquanto continuam a promover agendas econômicas que aprofundam as causas da perda de biodiversidade.
A Dra. Jessica Dempsey, do Departamento de Geografia da Universidade da Colúmbia Britânica, foi uma das investigadoras principais no estudo. Em suas palavras: “A nossa investigação mostra que, além de serem necessários mais recursos financeiros para conter a crise da biodiversidade, também é preciso repensar de forma mais ampla os mecanismos pelos quais as regras da economia estão a conduzir à sexta extinção. Precisamos olhar com atenção para elementos como a política fiscal e os direitos de propriedade intelectual, e até mesmo ideias inteiras que orientam o funcionamento da economia global — tais como aquelas que determinam o que significa para os governos ser ‘financeiramente responsáveis’, quando a história demonstra a ineficácia da austeridade em produzir bons resultados ambientais”.
“Para fazer uma analogia com a atual pandemia, o FMI propôs recentemente pagamentos de solidariedade para o Sul Global” diz Lim Li Ching, da Rede do Terceiro Mundo. “Esta seria também uma boa medida para a biodiversidade, mas precisa de ser acompanhada de profundas mudanças estruturais — e o FMI poderia começar por parar de obrigar esses mesmos países a adotarem políticas de austeridade.”
Os autores salientam que as desigualdades sociais em matéria de raça, gênero, classe e casta não só influenciam a forma como os efeitos da perda de biodiversidade são sentidos, mas também conduzem elas próprias à extinção e degradação ecológica, por forçarem injustamente os países em desenvolvimento e as comunidades com poucos recursos financeiros a adotarem estratégias de sobrevivência e desenvolvimento nocivas ao ambiente. Dessa forma, a justiça social e ambiental deve ser um elemento central nos esforços para enfrentar a crise da biodiversidade.
O relatório também se concentra nas dívidas — tanto monetárias como ecológicas — acumuladas pelo mundo rico às custas dos pobres. Os autores dizem que o pagamento destas dívidas é crucial, mas não pode ser realizado apenas pela concessão de mais financiamento através dos canais existentes — também é necessário um novo processo de regulamentação global para criar uma economia mais equitativa.
Os autores de Muito além do déficit: situar o financiamento da biodiversidade no contexto da economia global, publicado pela Rede do Terceiro Mundo e pela Universidade da Colúmbia Britânica em maio de 2021, dizem que chegou a hora de agir, num momento em que a COVID-19 acelera o ímpeto para repensar a estrutura e a regulação da economia global.
Num documento de síntese que acompanha o relatório completo, os investigadores apresentam cinco recomendações para modificar os processos econômicos globais, de modo a deixarem de contribuir para a destruição da biodiversidade. Assim, apelam aos 196 governos que são Partes na Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) para que:
1) Eliminem o nexo entre dívida e austeridade, que alimenta o extrativismo e impede a implementação da CDB.
2) Regulamentem as finanças e penalizem as indústrias que provocam danos à biodiversidade e aos direitos dos povos indígenas e comunidades locais.
3) Assegurem que o financiamento da biodiversidade não impeça a implementação de mudanças transformadoras nem prejudique os objetivos da CDB.
4) Reduzam as desigualdades de riqueza e poder aos níveis nacional e internacional, que impedem a execução de mudanças transformadoras.
5) Atuem para eliminar as desigualdades de classe, casta, raça e gênero, que estão na base da perda de biodiversidade e impedem a sua conservação e utilização sustentável.
O Dr. Patrick Bigger, do Centro de Pentland da Universidade de Lancaster, um dos líderes do projeto, afirma: “Estamos a apelar por mudanças urgentes na abordagem, com fortes ações estatais e multilaterais coordenadas para regular e redirecionar o financiamento, de projetos que degradam a biodiversidade para outros que promovam uma recuperação econômica benéfica ao ambiente. Para tal, é preciso reforçar as nossas instituições públicas e iniciar reformas profundas para transformar a política e o investimento público.” E acrescenta: “O nosso estudo demonstra que o financiamento é frequentemente canalizado para projetos ineficazes, sem efeitos comprovados ou totalmente contraproducentes. Muitos desses projetos baseiam-se no chamado financiamento misto, que acaba por apoiar organizações privadas orientadas pelo lucro, em vez de ajudar diretamente os países com maior biodiversidade a protegerem os seus frágeis ecossistemas e as pessoas que os conservam e deles dependem”.
Os autores do artigo são Patrick Bigger e Jens Christiansen, da Universidade de Lancaster, Jessica Dempsey, Adriana DiSilvestro, Audrey Irvine-Broque, Sara Nelson, Fernanda Rojas-Marchini e Andrew Schuldt, da Universidade da Colúmbia Britânica, e Elizabeth Shapiro-Garza, da Universidade Duke.
Referência:
Bigger, Patrick & Dempsey, Jessica & Christiansen, Jens & Rojas-Marchini, Fernanda & Irvine-Broque, Audrey & Nelson, Sara & Disilvestro, Adriana & Schuldt, Andrew & Shapiro-Garza, Elizabeth. (2021). Beyond The Gap: Placing Biodiversity Finance in the Global Economy. 10.13140/RG.2.2.10618.21449.
Henrique Cortez, tradutor e editor, a partir de original da Lancaster University
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 17/05/2021
Autor: Henrique Cortez
Fonte: EcoDebate
Sítio Online da Publicação: EcoDebate
Data: 17/05/2021
Publicação Original: https://www.ecodebate.com.br/2021/05/17/perda-de-biodiversidade-exige-repensar-a-economia-global/
As normas existentes para regular o comércio e o investimento, cujo efeito é estimular um modelo de desenvolvimento que degrada a biodiversidade
Um crescimento exponencial no financiamento público e privado das indústrias nocivas à biodiversidade
As políticas de austeridade e liberalização do comércio, impostas de forma generalizada como condições de acesso aos mecanismos de apoio financeiro
Os encargos da dívida nos países em desenvolvimento, que esgotam as finanças públicas e tornam impossível, para muitas nações, o investimento na conservação e utilização sustentável
As desigualdades enraizadas ao nível internacional e nacional, para as quais o desenvolvimento econômico nocivo à biodiversidade é apresentado como a única solução
Subsídios públicos para atividades que prejudicam a biodiversidade, cujo volume excede largamente o investimento internacional em iniciativas para a sua preservação
Evasão fiscal pelas elites ricas e as grandes empresas, que drenam ainda mais os cofres públicos
Os investigadores mostram que os países mais ricos não estão cumprindo suas obrigações de financiamento previstas na CDB. Em vez disso, nos quase 30 anos desde o nascimento da CDB em 1992, os signatários do mundo rico só pagaram cerca da metade (58%) do que prometeram, enquanto continuam a promover agendas econômicas que aprofundam as causas da perda de biodiversidade.
A Dra. Jessica Dempsey, do Departamento de Geografia da Universidade da Colúmbia Britânica, foi uma das investigadoras principais no estudo. Em suas palavras: “A nossa investigação mostra que, além de serem necessários mais recursos financeiros para conter a crise da biodiversidade, também é preciso repensar de forma mais ampla os mecanismos pelos quais as regras da economia estão a conduzir à sexta extinção. Precisamos olhar com atenção para elementos como a política fiscal e os direitos de propriedade intelectual, e até mesmo ideias inteiras que orientam o funcionamento da economia global — tais como aquelas que determinam o que significa para os governos ser ‘financeiramente responsáveis’, quando a história demonstra a ineficácia da austeridade em produzir bons resultados ambientais”.
“Para fazer uma analogia com a atual pandemia, o FMI propôs recentemente pagamentos de solidariedade para o Sul Global” diz Lim Li Ching, da Rede do Terceiro Mundo. “Esta seria também uma boa medida para a biodiversidade, mas precisa de ser acompanhada de profundas mudanças estruturais — e o FMI poderia começar por parar de obrigar esses mesmos países a adotarem políticas de austeridade.”
Os autores salientam que as desigualdades sociais em matéria de raça, gênero, classe e casta não só influenciam a forma como os efeitos da perda de biodiversidade são sentidos, mas também conduzem elas próprias à extinção e degradação ecológica, por forçarem injustamente os países em desenvolvimento e as comunidades com poucos recursos financeiros a adotarem estratégias de sobrevivência e desenvolvimento nocivas ao ambiente. Dessa forma, a justiça social e ambiental deve ser um elemento central nos esforços para enfrentar a crise da biodiversidade.
O relatório também se concentra nas dívidas — tanto monetárias como ecológicas — acumuladas pelo mundo rico às custas dos pobres. Os autores dizem que o pagamento destas dívidas é crucial, mas não pode ser realizado apenas pela concessão de mais financiamento através dos canais existentes — também é necessário um novo processo de regulamentação global para criar uma economia mais equitativa.
Os autores de Muito além do déficit: situar o financiamento da biodiversidade no contexto da economia global, publicado pela Rede do Terceiro Mundo e pela Universidade da Colúmbia Britânica em maio de 2021, dizem que chegou a hora de agir, num momento em que a COVID-19 acelera o ímpeto para repensar a estrutura e a regulação da economia global.
Num documento de síntese que acompanha o relatório completo, os investigadores apresentam cinco recomendações para modificar os processos econômicos globais, de modo a deixarem de contribuir para a destruição da biodiversidade. Assim, apelam aos 196 governos que são Partes na Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) para que:
1) Eliminem o nexo entre dívida e austeridade, que alimenta o extrativismo e impede a implementação da CDB.
2) Regulamentem as finanças e penalizem as indústrias que provocam danos à biodiversidade e aos direitos dos povos indígenas e comunidades locais.
3) Assegurem que o financiamento da biodiversidade não impeça a implementação de mudanças transformadoras nem prejudique os objetivos da CDB.
4) Reduzam as desigualdades de riqueza e poder aos níveis nacional e internacional, que impedem a execução de mudanças transformadoras.
5) Atuem para eliminar as desigualdades de classe, casta, raça e gênero, que estão na base da perda de biodiversidade e impedem a sua conservação e utilização sustentável.
O Dr. Patrick Bigger, do Centro de Pentland da Universidade de Lancaster, um dos líderes do projeto, afirma: “Estamos a apelar por mudanças urgentes na abordagem, com fortes ações estatais e multilaterais coordenadas para regular e redirecionar o financiamento, de projetos que degradam a biodiversidade para outros que promovam uma recuperação econômica benéfica ao ambiente. Para tal, é preciso reforçar as nossas instituições públicas e iniciar reformas profundas para transformar a política e o investimento público.” E acrescenta: “O nosso estudo demonstra que o financiamento é frequentemente canalizado para projetos ineficazes, sem efeitos comprovados ou totalmente contraproducentes. Muitos desses projetos baseiam-se no chamado financiamento misto, que acaba por apoiar organizações privadas orientadas pelo lucro, em vez de ajudar diretamente os países com maior biodiversidade a protegerem os seus frágeis ecossistemas e as pessoas que os conservam e deles dependem”.
Os autores do artigo são Patrick Bigger e Jens Christiansen, da Universidade de Lancaster, Jessica Dempsey, Adriana DiSilvestro, Audrey Irvine-Broque, Sara Nelson, Fernanda Rojas-Marchini e Andrew Schuldt, da Universidade da Colúmbia Britânica, e Elizabeth Shapiro-Garza, da Universidade Duke.
Referência:
Bigger, Patrick & Dempsey, Jessica & Christiansen, Jens & Rojas-Marchini, Fernanda & Irvine-Broque, Audrey & Nelson, Sara & Disilvestro, Adriana & Schuldt, Andrew & Shapiro-Garza, Elizabeth. (2021). Beyond The Gap: Placing Biodiversity Finance in the Global Economy. 10.13140/RG.2.2.10618.21449.
Henrique Cortez, tradutor e editor, a partir de original da Lancaster University
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 17/05/2021
Autor: Henrique Cortez
Fonte: EcoDebate
Sítio Online da Publicação: EcoDebate
Data: 17/05/2021
Publicação Original: https://www.ecodebate.com.br/2021/05/17/perda-de-biodiversidade-exige-repensar-a-economia-global/
Nenhum comentário:
Postar um comentário