Apelidadas de "oportunistas", tilápias têm alta capacidade de proliferação, compete, e em geral, são melhores sucedidas em ambientes alterados e pobres em recursos alimentares. Foto: Codevasf/Flickr.
Uma boa discussão acadêmica pautada em evidências científicas pode muitas vezes levar a grandes avanços, auxiliando na tomada de decisões em diversas áreas. Na área ambiental particularmente, as políticas públicas deveriam ser atualizadas de acordo com as novas descobertas e consenso científico. Infelizmente o que temos hoje é uma falta de diálogo entre a ciência e os tomadores de decisão, muitas vezes enviesada por interesses econômicos e “soluções milagrosas” de curto prazo.
Um exemplo disso, é um decreto do governo federal nº 10.576/2020, divulgado em dezembro de 2020, que sob a justificativa de desburocratizar a cessão de águas de domínio da União para a prática de aquicultura, acabou por favorecer a criação de espécies exóticas em reservatórios brasileiros. Em janeiro de 2021, um grupo de cientistas publicou uma carta na Science – uma das revistas científicas mais conceituadas do mundo – alertando sobre os riscos ambientais que tal alteração na legislação pode acarretar. O texto se baseou em evidências científicas que demonstram que o cultivo de espécies exóticas, como as tilápias, pode causar diversos impactos negativos ambientais, ecológicos e inclusive, socioeconômicos.
A criação de tilápias em tanques-rede altera a qualidade da água devido a um aumento na quantidade de matéria orgânica proveniente do excedente de ração e da grande concentração de dejetos lançados diretamente na água. A criação intensiva, com muitos indivíduos confinados em um pequeno espaço, favorece também o aparecimento de doenças que podem ser transmitidas para as espécies nativas. Além disso, os escapes de peixes dos tanques são muito comuns, e as estruturas necessárias para evitá-los são caras. O problema é que a tilápia é uma espécie muito resistente e que se adapta bem a diversas condições ambientais, então uma vez que ela alcança o ambiente natural, se espalha e se reproduz rapidamente, competindo com as espécies presentes na região por alimento e abrigo. Isso pode levar a uma diminuição nas populações de espécies nativas que são utilizadas por pescadores artesanais como fonte de sustento de suas famílias.
Em abril, um comentário na seção e-Letters no site da revista Science criticou a carta publicada em janeiro. O comentário dizia que a carta deixava dúvidas quanto ao tópico, pois não fica claro o porquê a criação de tilápia é uma ameaça para as águas brasileiras e acusam que os pontos levantados “parecem mais opinião do que dados científicos”. Não há nada de errado em cientistas discordarem sobre determinado assunto, e como já foi dito, isso pode levar a grandes avanços tanto para a ciência quanto para a sociedade. Porém, quando se discorda de uma evidência científica, deve-se apresentar outra que comprove o contrário. Curiosamente não foi isso que aconteceu neste comentário, pois boa parte dos argumentos baseavam-se apenas em leis que permitem o cultivo de espécies exóticas e no fato de que a aquicultura é importante para o desenvolvimento econômico do país. Embora essas duas questões sejam verdadeiras, elas não comprovam o fato de que o cultivo de tilápia não causa impactos negativos.
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Para entender o porquê podemos confiar em dados apresentados em artigos é preciso conhecer o processo de divulgação do conhecimento científico. Quando cientistas realizam um estudo, e escrevem um artigo para publicar seus resultados, eles devem ser completamente transparentes quanto à forma em que o fizeram. O texto do artigo passa então pelo crivo de vários especialistas no assunto, a fim de atestar a sua confiabilidade. É como um julgamento, em que os autores do artigo precisam provar para os “juízes” da revista que fizeram o estudo da maneira adequada e que seus resultados são verdadeiros. Apenas se os editores e revisores confiarem no conteúdo é que o artigo será publicado e disponibilizado para todos.
A seção de cartas de revistas científicas é um espaço destinado a discussão de assuntos de interesse geral, com base em evidências de estudos científicos já publicados. Para que um texto seja divulgado nesta seção, ele deve passar pelo processo editorial formal, tal qual foi explicado acima. Portanto, uma carta não pode ser considerada um estudo científico, por não envolver as etapas tradicionais de um artigo completo, mas é uma publicação confiável baseada em evidências científicas. No caso da revista Science, existe ainda a seção e-Letters, onde qualquer pessoa, cientista ou não, pode escrever comentários sobre os assuntos publicados na revista. Esses comentários não passam pela revisão dos editores, e, portanto, não são considerados uma publicação formal na revista. É como se fosse um comentário nas redes sociais, só que no meio acadêmico.
Como explicado acima, nem a carta publicada formalmente e nem um comentário no site da revista podem ser considerados artigos científicos. Porém, o texto do comentário publicado na seção e-Letters ganhou status de “estudo científico publicado na Science” em diversas mídias. Isso é errado, pois induz o público a acreditar que foi realizado um estudo completo (ou seja, coleta de dados, análise e interpretação dos resultados) e que os revisores da Science atestaram a confiabilidade do conteúdo, o que não é verdade. Devido a isso, o corpo editorial da revista decidiu por deletar o comentário do site, uma vez que ele estava sendo propagado erroneamente como artigo publicado.
Todos podem ter uma opinião sobre um assunto e publicá-la em redes sociais ou até mesmo no site da revista Science. A questão se torna problemática quando tentam alçar isso ao patamar de artigo científico para tentar convencer o público de algo. Neste caso, de que espécies exóticas invasoras, como a tilápia, não causam nenhum impacto negativo, sendo que existem inúmeras evidências que mostram o contrário, disponíveis para quem quiser ver.
É inegável que a aquicultura pode ser uma ótima alternativa de fonte de alimento e geração de renda, e que no Brasil o cultivo de espécies exóticas é permitido por lei. A grande questão é que mesmo sendo permitido ele não deixa de ser uma ameaça para nossa biodiversidade. Nesse cenário, a solução para o impasse seria a criação de pacotes tecnológicos para o cultivo de espécies nativas que permitiriam um desenvolvimento realmente sustentável. É surpreendente que o país com a maior diversidade de peixes do mundo ainda dependa quase que inteiramente de espécies importadas para desenvolver sua aquicultura.
Autor: LAÍS CARNEIRO · JEAN RICARDO SIMÕES VITULE · LARISSA FARIA · THIAGO VINICIUS TRENTO OCCHI
Fonte: oeco
Sítio Online da Publicação: oeco
Data: 17/05/2021
Publicação Original: https://www.oeco.org.br/analises/opiniao-nao-e-artigo-cientifico/
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