sexta-feira, 18 de maio de 2018

Filosofia hidrológica – parte I, artigo de Osvaldo Ferreira Valente

Por que filosofia hidrológica? Por sentir que falta, nas discussões sobre produção e uso de água, maior participação da sociedade, mas com base em conhecimentos que possam estar ao alcance das pessoas que não têm domínio técnico do tema e que constituem absoluta maioria. Há muito proselitismo, muito chamamento ao uso racional, mas que vem sustentado apenas com a ameaça de escassez ou mesmo da falta total. Quando o chamamento vem com apelo técnico, ele vem incompleto, em forma de receita, ou em formato que não está ao nível da população, pois ela não tem oportunidades de acesso a fundamentos hidrológicos, descritos em linguagem acessível.

Os artigos científicos, por exemplo, que concentram a maior parte das informações, são de entendimentos inalcançáveis para quem não é do meio. Mormente os da hidrologia, que estão repletos de equações matemáticas, até mesmo para representarem cálculos simples, numa tentativa errônea de complicar o que deveria ser sempre simplificado e colocado à disposição da sociedade. É possível encontrar informações na internet, mas é preciso muito cuidado, pois são comuns até erros conceituais, como, por exemplo, o da propalada água virtual.

A água é tão importante na vida humana que merece um pouco mais de atenção. Basta lembrar que ela está presente em nosso dia a dia: na torneira, no chuveiro, no vaso sanitário, na máquina de lavar nos aluimentos, etc., e também à nossa volta, em forma de umidade do ar que respiramos. Paramos para pensar nisso? Como a água se entrelaça em todas as nossas atividades? A filosofia, palavra de origem grega, fala em “amor à sabedoria”. Acho importante que a água faça parte desse amor. E olha que os filósofos gregos tinham por hábito levar esse amor à praça pública, buscando discutir os conhecimentos necessários ao alcance da sabedoria. E o conhecimento (episteme em grego) era confrontado com a mera opinião (doxa). O confronto era para deixar claro que opinião sobre um fato ou assunto qualquer pessoa pode ter, mas os conhecimentos sobre os mesmos demandam estudo e capacidade de análise. E a sociedade só vai evoluir se o episteme vencer o doxa.

Vale deixar claro, também, que a filosofia não deve ser pensada como aplicada somente a coisas complexas, mas também para analisar fatos correntes do dia a dia e que mexem com nossas vidas, como a chuva que bate na janela. No Brasil já temos excelentes filósofos fazendo um belo esforço para difundir a disciplina.

Infelizmente, quando o assunto é produção e uso de água no Brasil, ainda vemos certa predominância de doxa, ou de um monte de lugares comuns quando a assunto é tratado fora das academias. E também está sempre presente o fato de termos com as chuvas uma relação de amor e de desgosto. Amor quando vemos reservatórios cheios, por exemplo, significando certa tranquilidade no abastecimento de água; desgosto quando provocam cheias e inundações, ceifam vidas e dão prejuízos econômicos. Mas será que paramos para olhar a chuva batendo na janela e pensar um pouco sobre o fenômeno natural tão temido ou festejado. Somos capazes de avaliar as quantidades, ou melhor, os volumes de água trazidos por ela? Sabemos a razão de as moças do tempo falarem em milímetros de chuva, quando sabemos que milímetro é uma medida de comprimento e não de volume? Sócrates, o grande filósofo grego, gostava de discutir os assuntos fazendo perguntas e mais perguntas. Respondia uma pergunta com outra pergunta e talvez daí tenha surgido a máxima de que os conhecimentos evoluem mais com perguntas do que com respostas. Vamos, então, para algumas situações e perguntas:

1 – Um morador de Viçosa-MG, ao chegar em casa durante uma forte chuva, teve a atenção despertada pela quantidade de água que estava sendo despejada na rua pela tubulação que drena a área de domínio de sua propriedade. Entrou em casa, foi direto ao banheiro e, ao abrir a torneira, ficou pensando: tanta água desperdiçada pela calçada e esta aqui tendo que circular por quilômetros de tubulação para chegar ao meu banheiro. Veio-lhe a pergunta: qual era o volume de água que estava caindo sobre sua propriedade, trazido por aquela chuva? Podia ser calculado?

Vamos filosofar (pensar) um pouco, usando uma metodologia baseada em números. Se houvesse um tabuleiro do tamanho do terreno que é de 15 metros de frente e 20 metros de fundo, colocado mais alto do que a própria casa e perfeitamente na horizontal, ele mostraria no seu interior, após a chuva, uma lâmina de água com 20 milímetros de altura, por exemplo. O meteorologista dirá, portanto, que a referida chuva foi de 20 milímetros (0,020 m). E o volume recolhido pode ser calculado pela multiplicação da área do tabuleiro pela altura da lâmina d’água, assim:

Área do tabuleiro (igual à da propriedade) = 15 m x 20 m = 300 m2

Volume recolhido = 300 m2 x 0,020 m = 6 m3 (ou 6.000 litros)

Por isso aquela informação que às vezes nos é repassada, dizendo que 1 mm (0,001 m) de chuva representa o volume de um litro por metro quadrado. Olhe só o porquê:

Volume = 0,001 m x 1 m2 = 0,001 m3 ; como 1 m3 equivale a 1.000 L, basta multiplicar 0,001 m3 por 1.000 e termos o valor em litros, ou seja 1L.

O morador não ficou sabendo o valor daquela chuva, mas recordou que tinha lido algo sobre as chuvas em Viçosa, em 2017, e que teriam sido num total de 900 mm, valor bem menor do que a média histórica de 1.250 mm. Seguindo o raciocínio anterior, a área da propriedade tinha recebido, pelas chuvas de 2017, o volume de 270 m3 (300 m2 x 0,900 m), ou 270.000 L.

2 – A família do morador em pauta é constituída de quatro pessoas. Se o consumo de água tiver sido de 150 litros por pessoa e por dia (150 L/p.d), conforme valor considerado bastante razoável, isso teria dado um consumo anual de:

Consumo anual = (150 L/p.d) x (4 p) x (365 d/ano) = 219.000 L

Os números mostram, portanto, que mesmo em um ano considerado seco o volume recebido pela propriedade do morador de Viçosa suplantou as necessidades da família. É claro que esta conclusão é simplista, mas serve para provocar uma análise mais detalhada de providências que poderiam ser tomadas para o aproveitamento dessas águas de chuvas. Será que em vez estarmos sempre reclamando da falta de água não seria mais lógico aprendermos a manejar as chuvas? Aproveitarmos os volumes que elas lançam em nossos domínios? Por que as instituições (prefeituras, por exemplo) incluindo as academias, não têm interesse em alardear e difundir soluções simples para esse aproveitamento. E elas existem. Muitas que podem ser encontradas na internet, no ‘doutor’ Google.

O Fórum Mundial da Água acabou de discutir, em Brasília, a iminência de escassez generalizada. Mas terminado o Fórum, todo mundo voltou para casa e aí eu pergunto: como será nossa relação com a água em 2018? Para resolver as grandes questões, discutidas em tese durante o Fórum, precisamos despertar curiosidades semelhantes às do morador de Viçosa. Talvez elas possam conduzir a pequenas soluções que, somadas, serão capazes de resolver as grandes demandas.

A minha intenção com esta história de filosofia hidrológica é percorrer caminhos de conhecimentos existentes, mas esquecidos em cantos quaisquer, em trabalhos não lidos e apenas divulgados em artigos científicos, ou até mesmo em sites pouco visitados. Trazê-los para análise e para incentivo ao desenvolvimento de novos conhecimentos. Os cálculos elementares apresentados acima são apenas provocações, mostrando que o pensar não envolve necessariamente questões sofisticadas ou complexas. Pensar coisas simples pode ser altamente produtivo para a vida cotidiana. Viemos pensando coisas complexas até hoje e a situação dos recursos hídricos só faz piorar. Isso não indica que temos errado? Por que não procuramos mudar? Por que as coisas simples precisam ter envoltórios de luxo?

Terminando, deixo perguntas para serem discutidas em próximos artigos. Quem sabe até com novas perguntas. Por ora, aí vão algumas:

– É possível armazenar um pouco dos volumes recebidos para uso em atividades da residência, como em limpezas de áreas?

– Há possibilidade de fazer algum tratamento que possibilite usar a água armazenada para lavagem de roupa ou uso sanitário?

– É possível promover infiltração de água em áreas construídas? Tal ação pode colaborar para diminuir alagamentos urbanos?

– É possível uma relação mais racional do meio rural com os volumes de água recebidos das chuvas?

– Por que o consumo no meio rural é tão maior do que no urbano? E essa história de exportação de água virtual via produtos agrícolas?

– Por que as ações que têm sido adotadas na gestão da água não estão dando resultados? O que estaria errado?

– Qual a diferença básica dentre a hidrologia normalmente ensinada no Brasil e a hidrologia aplicada à produção de água em pequenas bacias hidrográficas?

Aguardem.

Osvaldo Ferreira Valente é engenheiro florestal, especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas, professor titular, aposentado, da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e autor de dois livros sobre o assunto: “Conservação de nascentes – Produção de água em pequenas bacias hidrográficas” e “Das chuvas às torneiras – A água nossa de cada dia”; colaborador e articulista do EcoDebate .( valente.osvaldo@gmail.com)

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 18/05/2018


Autor: EcoDebate
Fonte: EcoDebate
Sítio Online da Publicação: EcoDebate
Data de Publicação: 18/05/2018
Publicação Original: https://www.ecodebate.com.br/2018/05/18/filosofia-hidrologica-parte-i-artigo-de-osvaldo-ferreira-valente/

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