Assine e seus colaboradores estudam há duas décadas as transformações pelas quais passaram as paisagens do Pantanal, maior planície inundável do mundo. Durante esse período, verificaram que as lagoas salinas de Nhecolândia, diferentemente das de água doce, são cercadas por cordões de areia com 3 a 5 m de altura cobertos por vegetação de savana. Conhecidos como cordilheiras, esses imensos bancos de areia funcionam como barreiras que impedem as lagoas de água salina de se conectarem às de água doce durante as cheias e de serem abastecidas pelas vazantes que drenam as águas das chuvas. “Durante a estiagem, quando a evaporação é mais intensa e o nível da água diminui, os íons de magnésio, potássio e cálcio ficam mais concentrados, deixando as águas ainda mais salinas e alcalinas”, explica o geólogo. Quando volta a chover, as lagoas passam a ser alimentadas pela água que vem do lençol freático, com mais sais.
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Durante a estiagem, o nível da água diminui, expondo sedimentos ricos em matéria orgânica (cinza escuro e preto)
Ao longo dos últimos 70 anos, muitas hipóteses foram propostas na tentativa de explicar a formação das paisagens de Nhecolândia, assim batizada em referência a um dos primeiros proprietários de terra na região, o Nheco, apelido de Joaquim Eugênio Gomes da Silva (1856-1909). Uma dessas hipóteses sustenta que as lagoas de Nhecolândia surgiram a partir de depressões moldadas pelo acúmulo de grãos de areia fina transportados pelo vento em períodos secos do final do Pleistoceno, entre 20 mil e 15 mil anos atrás. Outra propõe que a formação das lagoas teria sido desencadeada no início do Holoceno, há aproximadamente 11 mil anos, a partir de mudanças bruscas e constantes no curso dos rios da região, fenômeno conhecido como avulsão fluvial. Segundo Assine, o acúmulo de sedimentos mais grossos e pesados frequentemente bloqueia o leito dos rios, fazendo com que as águas rompam as barrancas e se espalhem pelas áreas adjacentes (ver Pesquisa FAPESP nº 227). No entanto, apesar das pesquisas feitas nas últimas décadas, era difícil verificar qual das hipóteses seria a mais consistente, uma vez que os estudos sobre a formação das lagoas se baseavam apenas na interpretação de imagens de satélite e de radar. Faltavam dados que indicassem a origem dos sedimentos das lagoas.
Anos atrás, Assine e o geógrafo Renato Lada Guerreiro, então seu aluno de doutorado, decidiram coletar amostras de sedimentos de três lagoas salinas, batizadas por eles de salina da Ponta, salina Babaçu e salina Máscara, situadas no norte de Nhecolândia. Entre março e novembro de 2014 e em março de 2015, eles percorreram o Pantanal sul-mato-grossense em tratores, em carros adaptados para atravessar áreas alagadas e em pequenos aviões. Entravam na água, não raro sob o olhar de jacarés que repousavam nas margens, e, com a ajuda de uma marreta, fincavam um cilindro de alumínio de 1,70 m no fundo da lagoa. Ao ser retirado, o cilindro vinha carregado com uma espessa camada de sedimento, material que ajuda a recontar a história da formação dessas lagoas.
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Lagoa salina Coração, na fazenda Barranco Alto: suas águas costumam atingir temperaturas de até 40 ºC
Os sedimentos se acumulam em camadas horizontais no fundo das lagoas — as superiores são mais recentes, e as inferiores, mais antigas. Cada camada contém registros (isotópicos, geoquímicos, sedimentares ou fósseis) de como era o ambiente quando ocorreu a sua deposição. “Por meio da análise desses sedimentos é possível estudar as mudanças biogeoquímicas pelas quais aquele ambiente passou ao longo de milhares de anos”, explica Guerreiro, hoje professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná.
A camada mais profunda dos sedimentos era composta de areia fina, recoberta por uma camada de lama rica em matéria orgânica, contendo microfósseis dos esqueletos de esponjas de água doce e paredes celulares de algas microscópicas que vivem, sobretudo, em água salina. Esses dois grupos de organismos vivem em ambientes bem específicos e suas ecologias são conhecidas. Em laboratório, os pesquisadores realizaram a caracterização geoquímica e granulométrica dos sedimentos e a identificação dos microfósseis. Usaram uma técnica chamada luminescência opticamente estimulada para fazer a datação dos grãos de areia. Já as amostras com matéria orgânica, dispostas nas camadas mais superficiais, foram datadas por meio do método do carbono 14.
As análises indicaram que as camadas mais profundas dos sedimentos eram compostas de uma areia fina que começou a ser depositada na região de Nhecolândia há cerca de 11,5 mil anos, durante a transição do Pleistoceno para o Holoceno, um período predominantemente seco. Um dos microfósseis de esqueletos de esponjas identificados pelos pesquisadores é da espécie Heterorotula fistula, típica de lagoas efêmeras de água doce expostas a longos períodos de estiagem, similar às encontradas em ambientes semiáridos do interior da Austrália. A presença de fósseis desse microrganismo indica que as lagoas salinas de Nhecolândia eram preenchidas por água doce e frequentemente submetidas a períodos sazonais de seca com grandes variações no nível d’água. “Já nas camadas superiores, as esponjas também eram de água doce, mas de espécies típicas de condições estáveis, com pouca variação no nível de água, sugerindo que houve uma alteração no padrão de chuvas no Holoceno Médio, há aproximadamente 5 mil anos”, explica Guerreiro.
À medida que eles analisaram as camadas mais superficiais dos sedimentos, verificaram uma significativa diminuição das esponjas de água doce e um aumento expressivo de fósseis de diatomáceas, possivelmente decorrente da mudança para um ambiente com água mais salina e alcalina. “O padrão de deposição e preservação dessas esponjas nos sedimentos funciona como um registro das condições ambientais e hidrológicas e sugere ter havido uma mudança nas características hidroquímicas dessas lagoas, que se tornaram mais salinas e alcalinas”, explica Guerreiro. Segundo ele, isso teria acontecido há cerca de 900 anos, quando houve um aumento das temperaturas e da umidade no Pantanal.
As conclusões apresentadas no estudo indicam que mudanças ambientais ocorridas ao longo do Holoceno parecem ter sido consideravelmente mais importantes para a formação das paisagens de Nhecolândia do que se pensava. “Verificamos que os indicadores de água doce nos sedimentos mais antigos das lagoas salinas datam de um período reconhecidamente mais seco do Pantanal, enquanto os registros sedimentares salinos e alcalinos preservam as marcas de uma fase de climas úmidos em toda a América do Sul, incluindo o Pantanal”, ressalta Guerreiro.
Projeto
Mudanças paleo-hidrológicas, cronologia de eventos e dinâmica sedimentar no quaternário da Bacia do Pantanal (nº 14/06889-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular. Programa Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG); Pesquisador responsável Mario Luis Assine (Unesp); Investimento R$ 255.277,50.
Artigos científicos
McGLUE, M. M. et al. Holocene stratigraphic evolution of saline lakes in Nhecolândia, southern Pantanal wetlands (Brazil). Quaternary Research. On-line. ago. 2017.
GUERREIRO, R. et al. Paleoecology explains holocene chemical changes in lakes of the Nhecolândia (Pantanal-Brazil). Hydrobiologia. On-line. 9 nov. 2017.
Autor: RODRIGO DE OLIVEIRA ANDRADE | ED. 261 |
Fonte: fapesp
Sítio Online da Publicação: fapesp
Data de Publicação: NOVEMBRO 2017
Publicação Original: http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/11/24/lagoas-moldadas-pelo-tempo/?cat=ciencia
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