A comparação entre as duas situações logo acrescentou elementos a serem desvendados quando os tuco-tucos, diurnos na natureza, no laboratório passaram a ser noturnos. Essa mudança já tinha sido observada em outros animais, entre eles os parentes chilenos dos tuco-tucos conhecidos como coruros. A bióloga Patricia Tachinardi, do grupo de Gisele, concentrou-se nesse aspecto e concluiu que traz o benefício de economizar energia, conforme relata em artigo publicado no ano passado na revista científica Physiological and Biochemical Zoology.
Como parte de seu doutorado, defendido este ano, Patricia pôs tuco-tucos em câmaras que medem a atividade metabólica por meio do consumo de oxigênio na respiração. Nesses experimentos foi possível definir que temperaturas entre 23 graus Celsius (°C) e 33 °C são ideais para esses animais e estimar quanta energia eles economizam sendo diurnos ou noturnos. O estudo contou com a parceria do fisiologista norte-americano Loren Buck, da Universidade do Norte do Arizona, especialista em balanço energético nas condições naturais. Um percalço surpreendente foi que três dos nove animais sujeitos ao experimento, notívagos no laboratório, instantaneamente passaram à atividade diurna nessas caixas. “A umidade aumenta e a concentração de oxigênio é menor do que nas condições normais do laboratório, precisamos controlar essas condições para investigar o que incita a mudança no padrão de atividade.”
Acontece que no inverno, quando o aconchego do ninho subterrâneo seria bem-vindo, os tuco-tucos na natureza precisam estar mais ativos. Eles têm que comer mais para obter a energia suficiente para enfrentar o frio e o alimento, nessa época, é mais escasso. Torna-se então crucial restringir a atividade às horas em que o Sol ameniza a temperatura. Para estudar em detalhe o consumo energético em campo, o grupo de Gisele esbarra em limitações técnicas. “Os acelerômetros que temos ainda são muito grandes para serem acoplados aos animais livres”, diz a física. Ela se refere a aparelhos que, presos a coleiras ou implantados, poderiam registrar com precisão o movimento e o dispêndio de energia dos animais.
Orçamento energético
É curioso constatar a capacidade adaptativa do horário de atividade como se as condições ambientais acionassem um interruptor que instantaneamente muda o padrão. “Ser noturno ou diurno costuma ser associado à identidade de cada espécie, como um rótulo imutável”, comenta Gisele. As observações se encaixam no modelo “trabalhando por comida” do cronobiólogo holandês Roelof Hut, da Universidade de Groningen, onde Patricia passou um período durante o doutorado. Ele mostrou, em camundongos, que o aumento da dificuldade para obter comida os transforma de noturnos em diurnos. “Quanto mais eles precisam fazer esforço para comer, mais diurnos ficam”, explica a bióloga. Seria, de acordo com a hipótese, o que acontece com os tuco-tucos quando precisam cavar túneis para encontrar escassas folhagens. “O orçamento energético na natureza é bem justo, enquanto no laboratório eles têm alimento à vontade.” Na mordomia calórica do cativeiro, esses animais reverteriam ao modo noturno – supostamente o padrão nos ancestrais dessa espécie.
Desde o início, avaliar a atividade dos tuco-tucos não foi uma tarefa trivial. Um problema é eles passarem boa parte do tempo em galerias subterrâneas no solo desértico na região de Anillaco, na Argentina, um povoado de 1.400 habitantes mais conhecido por abrigar a casa do ex-presidente Carlos Menem, que nasceu ali. Ainda durante seu governo, em 1998, foi inaugurado na cidade o Centro Regional de Pesquisas Científicas e Transferência Tecnológica (Crilar), como parte de uma iniciativa para estabelecer polos científicos em áreas distantes. É o cenário ideal para estudar esses roedores, talvez uma espécie ainda não descrita. Enquanto sua taxonomia está indefinida, os pesquisadores os identificam como Ctenomys knighti, a espécie conhecida na região. “Está cheio deles no jardim do Menem e são considerados pragas pelos vinicultores na propriedade vizinha ao centro de pesquisa”, conta Gisele. Mesmo assim, o maior indício do período ativo dos tuco-tucos eram as vocalizações que emitem o dia inteiro, de dentro de suas tocas.
Gisele começou a estudar esses animais há oito anos em parceria com a bióloga argentina Verónica Valentinuzzi, do Crilar, que conheceu durante estágio de pós-doutorado no IB-USP. Desde o começo, contou com a ajuda de Patricia, Danilo Flôres e Barbara Tomotani, à época estudantes de graduação em biologia. Para monitorar os tuco-tucos era preciso capturar os animais, conseguir sensores que os acompanhassem sem perturbar suas atividades, além de desenvolver arenas seminaturais para experimentos de onde eles não conseguissem fugir cavando, entre outros desafios. Depois de várias tentativas e erros, conseguiram construir muros subterrâneos de concreto abaixo das cercas, instalar coleiras com sensores de luz e movimento nos animais e implantar sensores de temperatura em seu corpo.
Com esses equipamentos em oito animais durante os invernos de 2014 e 2015, foi possível verificar que todos se expunham à luz solar por breves períodos, quando jogam terra para fora durante escavações de túneis, quando buscam folhas das plantas que comem ou ficam parados à entrada, talvez se aquecendo. A exposição à luz acontece pelo menos uma vez por dia, mas em geral várias vezes, como mostrou artigo publicado em 2016 na Scientific Reports como parte do doutorado de Danilo, encerrado em 2016.
© PATRÍCIA TACHINARDI/USP
Cercas instaladas junto ao centro de pesquisa permitem experimentos em condições seminaturais
Dia no laboratório
O grupo então buscou entender como se dá a regulação do ciclo circadiano. Se deixados em escuro permanente no laboratório, com a atividade registrada pelo uso de uma daquelas rodas comuns em gaiolas de roedores de estimação, os tuco-tucos mantêm um ritmo de atividade que corresponde a 25 horas, um desvio comum em outros animais. Para sincronizar o relógio biológico às 24 horas de rotação da Terra bastaria um pulso de luz de poucos segundos por dia, mesmo que em horário variável, de acordo com um modelo computacional elaborado pelo grupo da USP simulando um oscilador circadiano: o mecanismo central que controla o relógio biológico. Surpreso com a previsão, Danilo fez o teste na realidade. Com apenas uma hora de luz acesa por dia, o tempo de executar tarefas como alimentar os animais e limpar suas instalações no laboratório, nove tuco-tucos passaram a exibir atividade coerente com um dia de 24 horas. Isso acontecia quando a luz era acesa em horários aleatórios (dentro dos limites das horas em que é dia fora do laboratório) ou predeterminados.
Reunindo experimentos em laboratório, no ambiente natural e medições em campo, os resultados estão contribuindo para definir os fatores mais centrais para o ciclo circadiano. Também arbitram a discussão teórica sobre como se daria essa regulação. No modelo conhecido como paramétrico, a luz teria um efeito contínuo na sua sincronização. “É como se um balanço fosse impulsionado continuamente”, compara Gisele. No modelo não paramétrico, o balanço se mantém em movimento graças a pancadas periódicas. Essas pancadas, no caso do relógio biológico, seriam as mudanças abruptas no aporte de luz que acontecem na alvorada e no crepúsculo. Os tuco-tucos contam outra história, híbrida entre os dois modelos, na qual as pancadas podem acontecer em qualquer ponto da trajetória do balanço.
O enfoque de modelagem matemática também foi o que guiou a descoberta dos mecanismos moleculares por trás dos ritmos circadianos, que rendeu o Prêmio Nobel de Medicina este ano aos norte-americanos Jeffrey Hall, Michael Rosbash e Michael Young. “O feito importante para o prêmio foi identificar quais elementos participam da regulação do ritmo de 24 horas”, explica Gisele. A proteína PER, produzida pelo gene period, identificado nos anos 1980, acumula-se no núcleo das células, inibindo a ação do gene. “Mas o modelo indicava que as etapas bioquímicas desse processo não chegavam a 24 horas, assim foi matematicamente previsto que deveria haver algum elemento de atraso.” Isso acontece graças a outra proteína que degrada a PER, retardando o acúmulo. Pulsos de luz também atuam na degradação de outra proteína do relógio, levando a uma sincronização explicada por modelagem matemática.
“O sistema que oscila tem a dinâmica regida por equações diferenciais”, afirma Gisele, prevendo que o sistema revelado pelo modelo subterrâneo deve valer para ratos e até para pessoas. “O oscilador é o mesmo para todos”, conclui, com seu olhar de física.
Projeto
Cronobiologia de roedores subterrâneos sul-americanos, em laboratório e em campo(nº 14/20671-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Gisele Akemi Oda (USP); Investimento R$ 162.935,51.
Artigos científicos
FLÔRES, D. E. F. L. et al. Entrainment of circadian rhythms to irregular light/dark cycles: A subterranean perspective. Scientific Reports. v. 6, 34264. 4 out. 2016.
TACHINARDI, P. et al. The interplay of energy balance and daily timing of activity in a subterranean rodent: A laboratory and field approach. Physiological and Biochemical Zoology. v. 90, n. 5, p. 546-52. set.-out. 2017.
TACHINARDI, P. et al. Nocturnal to diurnal switches with spontaneous suppression of wheel-running behavior in a subterranean rodent. PLOS ONE. v. 10, n. 10, e0140500. 13 out. 2015.
Autor: MARIA GUIMARÃES | ED. 261 |
Fonte: fapesp
Sítio Online da Publicação: fapesp
Data de Publicação: NOVEMBRO 2017
Publicação Original: http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/11/24/um-relogio-que-funciona-no-escuro/?cat=ciencia
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