sexta-feira, 5 de janeiro de 2018
Equipe da Fiocruz propõe sexta forma de malária, transmitida por mosquitos infectados ao picar primatas silvestres da Mata Atlântica
Formas do Plasmodium vivax em diferentes estágios de desenvolvimento em células vermelhas do sangue humano (na página à esquerda) e de P. simium nas de macaco (à direita). A primeira célula de cada quadro não está infectada
Em 1966, o parasitologista paraense Leônidas Deane (1914-1993), então professor na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), descreveu o primeiro caso conhecido de malária humana causada pelo protozoário Plasmodium simium. Até então, pensava-se que esse tipo de parasita provocava a doença apenas em macacos. Os protozoários haviam sido encontrados no sangue de um guarda florestal que coletava mosquitos na copa de árvores para pesquisadores no Horto Florestal da cidade de São Paulo, uma área de mata em que nenhum caso de malária fora registrado antes. A possibilidade de transmissão para outras pessoas dessa forma de malária por mosquitos que haviam picado macacos infectados não pôde ser demonstrada na época em que foi apresentada. Meio século depois, uma equipe da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) retomou a hipótese de Deane e propôs uma sexta forma de malária humana, transmitida por mosquitos que se infectaram com P. simium ao picar macacos contaminados. A proposta terá ainda de ser validada por outros estudos e reconhecida por organismos internacionais.
A malária é transmitida às pessoas por mosquitos do gênero Anopheles contaminados com os agentes infecciosos – protozoários do gênero Plasmodium. As formas de malária são diferenciadas por meio da identificação ao microscópio da espécie de Plasmodium que se multiplica nas células vermelhas do sangue. Embora os sintomas iniciais sejam semelhantes – febre, calafrios, dor de cabeça e dores no corpo –, a evolução da doença depende do agente causador: o P. vivax causa uma malária mais branda e o P. falciparum, mais grave (ver quadro). Uma das formas, causadas pelo P. knowlesi, foi descrita em 1965 na Malásia como a primeira a ser transmitida para pessoas por mosquitos que se infectaram ao picar macacos, caracterizando uma zoonose, doença intermediada por animais, que funcionam como reservatórios dos agentes infecciosos. Descrito em 1932 no sangue de macacos e facilmente confundido com P. malariae e P. falciparum, o P. knowlesi tem sido o responsável por um número crescente de casos na Malásia – foram de 703 em 2011 e 996 em 2013 –, na Tailândia, na Indonésia, no Vietnã e nas Filipinas.
A conclusão de que macacos podem servir de reservatório para os protozoários causadores da malária também no Brasil resultou de análises de amostras de sangue de três animais e de 28 moradores da região serrana do Rio de Janeiro. “No começo acreditávamos serem casos de malária causados pelo P. vivax, a forma mais comum no Brasil e nessa região”, conta o parasitologista Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro, pesquisador da Fiocruz do Rio de Janeiro. “Como os sintomas eram levemente diferentes, consideramos a possibilidade de se tratar da malária de macacos descrita por Deane.”
O P. vivax e o P. simium pouco se diferenciam em exames de sangue ao microscópio. A equipe da Fiocruz distinguiu um do outro ao identificar dois trechos do DNA mitocondrial diferentes em cada espécie e considerou que a possibilidade de infecção por P. simium poderia explicar os surtos na área da Mata Atlântica fluminense. Os pesquisadores idenficaram P. simium em 28 dos 49 casos autóctones (de origem local) de malária registrados na região em 2015 e 2016. Realizado pela parasitologista da Fiocruz Patrícia Brasil e detalhado em um artigo publicado em outubro na Lancet Global Health, o trabalho alerta para o risco de ocorrência de malária em áreas distantes da Amazônia, origem de 99% dos 131 mil casos de janeiro a setembro de 2017, de acordo com o Ministério da Saúde. A Organização Mundial da Saúde registrou 214 milhões de casos de malária e 438 mil mortes em decorrência da doença em 95 países em 2015.
Uma equipe da Fiocruz de Minas Gerais, também por análise molecular, identificou P. simium em nove de um grupo de 65 bugios-ruivos e macacos-prego mantidos em cativeiro ou em áreas de Mata Atlântica no município de Indaial, em Santa Catarina, como relatado em um estudo publicado em 2014 na Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. O muriqui é outra espécie de primata que pode abrigar esse parasita, identificado em 1951 em um macaco de uma mata próxima à cidade de São Paulo e descrito pela primeira vez pelo parasitologista carioca Flávio Oliveira Ribeiro da Fonseca (1900-1963), professor da FM-USP. Também se encontrou o P. simium em sangue de macacos nos estados de São Paulo, Espírito Santo e Paraná, segundo a bióloga Cristiana Ferreira Alves de Brito, pesquisadora da Fiocruz de Belo Horizonte.
“A letalidade da malária em pessoas fora da região amazônica é muito maior, porque os médicos das cidades do Sul e Sudeste não suspeitam de que a febre alta e a anemia possam ser sintomas de malária”, afirma Cristiana. “Temos de alertar os médicos e os centros de saúde para fazer o diagnóstico correto, porque o tratamento é eficiente.” Em novembro de 2010, um viajante vindo da Nigéria e outro da Costa do Marfim morreram de malária em São Paulo depois de passarem por hospitais cujos médicos não souberam diagnosticar a doença (ver Pesquisa FAPESP nº 186). O Centro de Vigilância Epidemiológica do Estado de São Paulo registrou oito casos de malária autóctone em pessoas em 2016 e cinco até outubro de 2017, a maioria em cidades litorâneas próximas a matas.
“Por causa da dificuldade dos médicos de fora da região amazônica em reconhecer a doença, a descrição de casos de malária no Rio de Janeiro como uma zoonose configura-se como um grande desafio para o controle da doença”, comenta a bióloga Silvia Di Santi, pesquisadora da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen) e do Instituto de Medicina Tropical da FM-USP. “Para caracterizar melhor essa situação, é fundamental ampliar as áreas de estudo, em regiões com o mesmo perfil epidemiológico, e descrever o ciclo completo da transmissão, com mosquitos, macacos e pessoas infectados.”
Os casos de malária transmitidos em áreas de Mata Atlântica ao longo do litoral caracterizam-se por uma forma benigna da doença, segundo Silvia. Os moradores da região serrana do Rio infectados com o P. simium apresentaram sintomas semelhantes, embora mais brandos, aos causados pelo P. vivax e responderam ao tratamento com uma associação de cloroquina e primaquina. Dois pacientes, por não poderem tomar primaquina, receberam apenas cloroquina e, 18 meses depois, não apresentaram recaída. Segundo Ribeiro, o fato de a malária não ter reaparecido nessas pessoas é uma indicação de que o P. simium, diferentemente do P. vivax, poderia não manter formas adormecidas do parasita no fígado, geralmente eliminadas pela primaquina.
Segundo Ribeiro, a infecção poderia ser causada por P. simium ou por P. vivax que se adaptou ao macaco e chegou às pessoas por meio dos mosquitos: “Só vamos saber quando fizermos o sequenciamento completo de seus genomas.” Entre os especialistas, não há consenso se P. vivax e P. simium seriam mesmo espécies diferentes ou variações da mesma espécie. Em um artigo de 2005 na PNAS, pesquisadores da Universidade da Califórnia em Irvine, Estados Unidos, argumentaram que pode ter havido pelo menos duas transferências de P. vivax de macacos para pessoas ou no sentido oposto, nos últimos milhares de anos. “Na África”, diz Cristiana, “o vivax e o falciparum vieram dos macacos para as pessoas”.
Artigos científicos
BRASIL, P. et al. Outbreak of human malaria caused by Plasmodium simium in the Atlantic Forest in Rio de Janeiro: A molecular epidemiological investigation. Lancet Global Health. v. 5, p. e1038-1046. 2017.
COSTA, D. C. Plasmodium simium/Plasmodium vivax infections in southern brown howler monkeys from the Atlantic Forest. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. v. 109 (5), p. 641-53. 2014.
LIM, C. S. et al. Plasmodium vivax: Recent world expansion and genetic identity to Plasmodium simium. PNAS. v. 102 (43), p. 15523-2005.
Autor: CARLOS FIORAVANTI | ED. 262 | DEZEMBRO 2017
Fonte: fapesp
Sítio Online da Publicação: fapesp
Data de Publicação: Dezembro de 2018
Publicação Original: http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/12/28/de-macacos-para-gente/?cat=ciencia
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