Diante desse cenário de inegáveis avanços tecnológicos, também despontam novos desafios, com o surgimento de verdadeiros dilemas no campo da Ética e do Direito. Afinal, os limites para que uma inovação tecnológica seja revolucionária ou negativa para a sociedade são tênues. Para investigar essas questões, a psicóloga e filósofa Maria Clara Dias, que é Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ, e professora do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), e o filósofo Marcelo de Araujo, professor da FND e do Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), dedicam-se ao projeto de pesquisa internacional Sienna – sigla para Stakeholder-Informed Ethics for New technologies with high socio-economic and human rights impact, que conta com recursos da ordem de 4 milhões de euros, providos pelo programa Horizon 2020, da União Europeia. Ambos são, também, pesquisadores do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na modalidade “bolsa de produtividade”.
Lançado em outubro de 2017 e com duração prevista de três anos e meio, o projeto é coordenado pela Universidade de Twente, na Holanda, com o suporte da empresa especializada em consultoria multidisciplinar na área de desenvolvimento tecnológico Trilateral Research, do Reino Unido, sendo desenvolvido por uma rede de pesquisadores de instituições localizadas em diferentes países. O propósito do Sienna é fazer, em primeiro lugar, um levantamento de quais novas tecnologias já são usadas nos países integrantes, qual a opinião pública sobre os limites éticos e sociais da utilização delas em cada um desses países, e, a partir de discussões com acadêmicos e gestores da área tecnológica, lançar as bases para estabelecer, ao final do projeto, diretrizes internacionais para nortear a elaboração de normas jurídicas, a serem pactuadas futuramente por todas as nações que o integram, e assim orientar e regular o uso socialmente responsável dessas inovações tecnológicas.
“O objetivo do projeto é avaliar as implicações éticas e sociais do uso das novas tecnologias, em três eixos temáticos: genética, inteligência artificial e ‘aprimoramento humano’. Ainda não existe uma padronização internacional de legislação para essas inovações. Daí a necessidade de se estabelecer um projeto coletivo, pois não adianta um país estabelecer uma lei rígida e outros não, já que as empresas migram em busca de uma legislação mais branda”, explica Maria Clara, que coordena o estudo na UFRJ, lembrando que a universidade é a única instituição nas Américas que integra o projeto, além do Centro Berkman Klein para Internet e Sociedade, que integra a Escola de Direito da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.
Marcelo de Araujo e Maria Clara Dias destacam que o projeto vai orientar o estabelecimento de normas de uso das novas tecnologias (Foto: Divulgação/UFRJ)
O grupo da UFRJ pesquisa o chamado “aprimoramento humano”, tema que vem ganhando destaque nas discussões filosóficas, mais particularmente, no campo da Ética. A questão em debate é que a tecnologia já é – e será ainda mais nos próximos anos – uma importante aliada para aprimorar as habilidades humanas, na forma de implantes (inclusive neurais) e próteses inteligentes, drogas, melhoramentos genéticos ou aparatos tecnológicos. O desejo de aprimoramento humano é antigo na história das sociedades, mas somente com o atual avanço das biociências, da robótica, da nanotecnologia e da biomecatrônica, esse ideal de aprimoramento, adaptação, superação e evolução biológica da espécie humana vem se tornando cientificamente mais tangível. Mas quais são os limites éticos e morais para a intervenção artificial sobre a constituição dos seres vivos? Qual a validade do argumento de que há uma fronteira entre aquilo que cresceu naturalmente e aquilo que foi feito artificialmente, e de que este limite deve, do ponto de vista moral, ser preservado?
Diante desses dilemas, torna-se cada vez mais urgente discutir os aspectos da ética e da bioética envolvidos com a ampliação das capacidades humanas mediante o uso de tecnologias já disponíveis e em desenvolvimento – que resultarão nos “humanos aprimorados”, ou seja, em pessoas dotadas de capacidades físicas e mentais acima das capacidades tidas como “normais” dos humanos. “O diferencial desse projeto é que ele pretende orientar o estabelecimento de políticas públicas para regulamentar a utilização das novas tecnologias de acordo com os valores de justiça social e direitos humanos. Poucos países possuem legislação sobre o tema, tampouco o Brasil tem, até pelo ineditismo do assunto”, completou Araujo, que, por sua vez, foi contemplado pela FAPERJ em 2014, com o programa Cooperação bilateral FAPERJ – Birmingham e/ou Nottingham.
De acordo com os pesquisadores, pode-se dizer, brevemente, que há duas correntes de pensamento teórico opostas sobre essa questão. O debate em torno da moralidade do uso das técnicas biocientíficas para o aprimoramento humano, dizem, está polarizado entre aqueles que assumem uma postura a favor do aprimoramento (os transhumanistas) e os que se posicionam como contrários a ele (os bioconservadores). “Entre os transhumanistas estão aqueles que acreditam que um amplo rol de técnicas de aprimoramento deve ser desenvolvido e que as pessoas devem ser livres para usá-las e transformar-se de acordo com sua vontade. Segundo esta perspectiva, até mesmo os indivíduos considerados saudáveis seriam beneficiados pelas inovações biotecnológicas. Já os bioconservadores defendem a indisponibilidade do patrimônio genético humano à tecnicização, pois as tecnologias de aprimoramento humano comprometeriam a dignidade humana”, resume Maria Clara.
A pesquisadora acredita que as novas tecnologias para aprimoramento humano devem ser utilizadas sim, mas com cautela, especialmente pela possibilidade de se criar um abismo em relação ao acesso a essas inovações. “O problema não são as inovações, mas quem terá o poder sobre elas. É preciso pensar na possibilidade real de um aumento nas desigualdades entre populações de diferentes países, desenvolvidos e periféricos, causado pela limitação do acesso às novas tecnologias utilizadas para o aprimoramento humano. Isto se o acesso a elas for mercantilizado, depender das condições econômicas das pessoas. Alguns segmentos populacionais, de menor poder aquisitivo, podem ficar deficitários cognitivamente ou fisicamente se não aderirem ao aprimoramento humano e as camadas mais ricas aderirem”, ponderou Maria Clara. “Um exemplo será o controle das técnicas de manipulação genética. Elas ficarão sob a responsabilidade de laboratórios, de empreendedores particulares ou dos governos? É preciso discutir e regular essas questões”, completou.
As questões éticas que surgem com a possibilidade de editar ou modificar uma sequência do código genético humano são o tema da pesquisa que Marcelo de Araujo está desenvolvendo na Universidade de Konstanz, na Alemanha. O pesquisador obteve uma bolsa da Fundação Alexander von Humboldt para pesquisar a ética da edição genômica no Departamento de Filosofia daquela universidade alemã. Ele analisa, especificamente, os dilemas morais decorrentes da invenção de um novo método de edição genética, utilizando a proteína CRISPR-Cas9 – do inglês, Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats, ou seja, Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas –, que funciona como uma tesoura molecular, cortando e remendando, literalmente, trechos indesejados do DNA. Em 2015, esse sistema foi utilizado por cientistas da Universidade de Sun Yat-sen, na China, para editar o genoma de 86 embriões humanos não viáveis – sem condições de se tornarem embriões –, em um experimento que provocou um debate mundial sobre os limites éticos da ciência. Na ocasião, a equipe teve como objetivo modificar o gene responsável pela beta-talassemia, um distúrbio sanguíneo fatal.
Pouco tempo depois, em julho de 2017, houve a primeira tentativa de criar embriões humanos geneticamente modificados, realizada por pesquisadores da Oregon Health and Science University, nos Estados Unidos. Eles alteraram o DNA de embriões unicelulares, ainda nas primeiras fases de desenvolvimento, e conseguiram a completa alteração dos genes selecionados, logrando um resultado promissor, com poucas mutações erradas (off-target). Esses fatores representam um grande passo rumo ao nascimento da primeira geração de humanos geneticamente modificados. Uma vez editado geneticamente, o embrião seria capaz de transmitir a característica alterada aos seus descendentes.
O surgimento de inovações científicas e tecnológicas, como a edição do genoma humano, abre espaço para novos dilemas no campo da Ética e do Direito (Ilustração: Vitstudio)
E se pudéssemos, antes mesmo de a pessoa nascer, modificar o genoma de um embrião humano para que ele, mais tarde, se torne uma pessoa com capacidades especiais? E, igualmente, escolher o sexo do bebê, a cor dos olhos ou as suas habilidades quando ficasse adulto? A experiência, desse modo, suscita um temor do uso da engenharia genética para experimentos que promovam a segregação social – o que faz relembrar o fantasma da eugenia nazista, que com a teoria da “pureza racial” pregava a “melhoria” das populações por meio do casamento de pessoas com características supostamente “superiores” e a eliminação ou esterilização das ditas “indesejadas”, desde doentes mentais a homossexuais, passando por negros, índios e judeus.
O filósofo também defende o uso responsável e regulado das novas tecnologias. “Embora o objetivo dos cientistas seja desenvolver métodos que, no futuro, possam auxiliar na erradicação de doenças hereditárias por meio da edição dos genes responsáveis pelas enfermidades, o experimento é controverso por abrir uma porta para experimentos de engenharia genética que, se realizados irresponsavelmente, podem trazer, no futuro, efeitos temerários para a humanidade, como uma discriminação genética dos indivíduos geneticamente aprimorados sobre os indivíduos naturais”, avaliou Araujo.
Nos Estados Unidos, pesquisas com embriões humanos não são proibidas, mas elas não podem ser financiadas com verbas do governo federal. O experimento que ocorreu no Oregon Health and Science University foi financiado por meio de doações privadas. “Por isso, é preciso analisar o tema em âmbito internacional. No Brasil, uma nova legislação teria de ser amplamente debatida pela sociedade civil para se regular o uso de edição genômica em clínicas de fertilização. Curiosamente, a legislação brasileira não permite a compra ou venda de sêmen humano em território nacional, mas, por outro lado, também não proíbe a importação de sêmen humano”, disse o pesquisador, que coordena na UFRJ o grupo de estudo Ética, Direito, e Novas Tecnologias. Hoje, essas inovações tecnológicas discutidas no âmbito do projeto podem parecer distantes para a sociedade em geral, mas o desenvolvimento das tecnologias de aprimoramento humano vão forçar as populações a decidirem se aprovam ou não os dilemas que envolvem a bioética.
Entre as outras instituições que participam do projeto Sienna, estão a Universidade de Uppsala, na Suécia; a Fundação Helsinki de Direitos Humanos, na Polônia; a Universidade de Granada, na Espanha; a Universidade Ionian, na Grécia; a Universidade Tecnológica de Dalian, na China; o Centro Nacional de Pesquisa Científica (Sciences Po), da França; a Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul e a Universidade de Chuo, no Japão. O projeto também tem o suporte de organizações como a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Organização para o Genoma Humano, o Instituto de Engenheiros Elétricos e Eletrônicos (IEEE), organização técnico-profissional dedicada ao avanço da tecnologia para a humanidade, a EURobotics, a All European Academies (ALLEA), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e o Conselho Europeu.
* Reportagem originalmente publicada em Rio Pesquisa, Ano XI, Nº 41 (dezembro de 2017)
Autor: Débora Motta
Fonte: Faperj
Sítio Online da Publicação: Faperj
Data de Publicação: 28/03/2018
Publicação Original: http://www.faperj.br/?id=3540.2.6
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